Investigadora CRIA-Iscte
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Qual a memória mais antiga que tem da Antártida?
A da minha primeira ida, em 2014, a viagem que mais me marcou. Foi nessa altura que começou a minha ligação com o Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas (LEACH), da Universidade Federal de Minas Gerais. Na verdade, quando o professor argentino Andres Zarankin me convidou, hesitei bastante. Pensei que era perigoso, que era difícil e, naquele caso, ainda tínhamos uma agravante: como precisávamos de fazer escavações numa zona protegida, onde não pode haver estações, precisávamos de criar um ponto de acampamento.
Que idade tinha?
Tinha 33, 34 anos. Essa primeira viagem foi, de facto, muito marcante porque as condições eram difíceis. Caminhávamos contra o vento durante muito tempo, sem conforto, sem banho nem grande coisa para comer, apesar dos esforços da marinha brasileira, que foi quem nos levou. Na altura, nem nas estações havia internet e, por isso, posso dizer que foi uma espécie de experiência “amor-aventura”. Além disso, permitiu-me uma grande conexão com a natureza, com aquele lugar sem pessoas.
Dessa vez, viu pinguins?
Sim, ficámos muitos próximos das pinguineiras, os locais onde os pinguins costumam estar nesse período de verão. Também vi logo elefantes marinhos e uma baleia morta, encalhada. Não me lembro qual era a espécie, mas fiquei muito impressionada, foi a primeira vez que vi um animal daquele tamanho. Para mim, ficou logo muito claro que, perante todas as aquelas circunstâncias, é fundamental que o grupo de pesquisa com que viajamos esteja fortalecido. Há alturas em que pensamos: o que é que eu estou a fazer aqui? [risos]
É nessas escavações que encontra os sapatos dos caçadores do princípio do século XIX, que estudou no âmbito do seu mestrado?
Na década de 90 do século passado, foram encontrados alguns vestígios desses caçadores do século XIX, pedaços de couro, sapatos, coisas assim… Não se tinha uma ideia clara da proveniência desses materiais, mas, a partir dessa altura, entre chilenos e argentinos, começou-se a pensar numa linha de investigação à volta dos vestígios dos foqueiros.
Ao todo, quantas vezes é que já esteve na Antártida?
Cinco vezes; em fevereiro de 2026, será a sexta vez que lá vou, agora já no âmbito do projeto ALIGHT.
E ainda se surpreende?
A experiência de estar acampado é que é o limite. Só este ano é que fiquei na Base Professor Julio Escudero, uma estação chilena. Dantes não havia internet e, agora, já existe. Posso parecer um pouco retrógrada, mas a verdade é que ficou mais chato. É a globalização, claro, está a acontecer em todo o mundo, mas parece que já não saímos da urbanidade. Sempre procurei conversar com as pessoas mais velhas, as mais experientes, cheguei a conhecer um senhor que já tinha ido à Antártida 30 vezes – foi através dele que fiquei a saber pormenores acerca das dificuldades de comunicação do antigamente.
Portanto, a surpresa tem sido cada vez menor?
Sim, mas ainda é fantástico. Veja: desconheço outro lugar no mundo terra nullius, onde não existem nativos, onde o governo é feito por vários países e, simultaneamente, não pertence a nenhum país. As tendências políticas estão pulsantes, existem interesses económicos, existe um crescimento vertiginoso do turismo, mas tenta-se manter um certo equilíbrio.
Há um ambiente colaborativo?
Sim, e isso é muito rico para mim, que trabalho com a cultura, com a presença humana e com o património imaterial. Estão a surgir novas práticas e eu tenho que entender como é que elas se relacionam. Estão lá os cientistas e os investigadores, mas não só, também estão os aventureiros, os militares e o pessoal de apoio, médicos e dentistas, por exemplo. Quando fiquei na estação chilena, também pude visitar a estação russa, que inclui uma igreja ortodoxa. Como coincidiu com o aniversário da estação, havia uma celebração e pudemos assistir aos rituais. Eu estava com um investigador da Colômbia e com outra investigadora britânica, é este o ambiente da Antártida.
A questão da pressão turística, que já se sente nestes lugares, também é relevante para o projeto ALIGHT?
A Antártida é um lugar pouco afetado pela presença humana. No entanto, além da questão do aquecimento global, o turismo acaba sempre por afetar o trabalho dos cientistas, que estão ali a estudar alguns musgos ou as poucas briófitas que existem, por exemplo. Os turistas podem, inclusive, trazer espécies novas, que não são endémicas. Há quem vá à procura da aventura, há quem queira ver os animais, há quem vá à procura de uma espécie de busca espiritual. A questão não é tanto a quantidade de pessoas que hoje vão à Antártida, mas mais a questão: onde vamos chegar? Como é que os comités vão regular isso tudo?
Parte do pressuposto que é preciso chamar a atenção para a importância de estudar a Antártida para lá, digamos, daquele ecossistema natural. Porquê?
Se olharmos para o exemplo do Polo Norte, já existe essa tradição de estudo em Ciências Sociais porque existem nativos do Polo Norte. Na Antártida, porém, não existem tanto. Os estudos nas áreas da História, da Arqueologia, da Antropologia têm, no entanto, vindo a aumentar. A Antártida tem uma história, uma população, uma comunidade. Vivenciamos a sua cultura e as suas práticas. E tudo isto é importante, inclusive para fortalecer as relações diplomáticas, o respeito pela natureza, pelo Tratado da Antártida, pelas diversas áreas científicas.
Outro dos aspetos do ALIGHT é a questão do imaginário sobre a Antártida e do modo como ele foi sendo construído, do cinema à literatura. Porque é que, enquanto investigadora, é importante ir à procura dessas referências?
Uma parte desse imaginário foi propagado por pessoas que nunca foram à Antártida. Como se propagou essa memória? Muito do que existe foi divulgado na era heroica da exploração da Antártida, entre o final do século XIX e o princípio do século XX. Países como o Reino Unido, a Noruega e os Estados Unidos da América desenvolveram expedições e, com essa energia imperialista, tentaram conquistar todos os rincões do mundo. A nossa ideia é também diversificar esse imaginário, mostrar que existem outras coisas para as pessoas se apropriarem da Antártida de uma maneira mais diversa, mais consciente e até mais divertida.
O que pensa dessa historiografia mais tradicional?
É bastante cruel, destacaram uma série de pessoas como heróis e esqueceram todas as outras. Esqueceram, por exemplo, todos os que trabalharam para erguer as estações para onde, hoje, vamos trabalhar. Por isso, é preciso, vamos dizer assim, democratizar um pouco a história da Antártida, desenvolver uma abordagem mais contemporânea da historiografia, em conexão com a antropologia, com a história oral, com a diversidade de vozes. Não deixar vozes esquecidas.
Em que fase do projeto estão?
Já fiz a primeira fase do trabalho de campo e, como expliquei, regressarei em fevereiro do próximo ano. Fizemos observação participativa, entrevistas, conseguimos chegar a mais de 300 investigadores que trabalham com o tema da Antártida. Com a ajuda do ISTAR-Iscte, o Centro de Investigação em Ciências da Informação, Tecnologias e Arquitetura, também estamos a construir um protótipo de mapeamento do património. Com este tempo de projeto, não vai ser possível cobrir todas as manifestações culturais, mas vamos pelo menos colocar todas aquelas que encontrámos num mapa cultural. E isso já responderá a muitas perguntas: o que é a Antártida? O que pode vir a ser? Qual é a sua cultura? Que pessoas lá vão? Que património imaterial lá existe?
Nas entrevistas, de um modo geral, as pessoas gostam de falar? Sempre houve um certo secretismo em torno da Antártida…
Bem, preocupo-me sempre em deixar claro que respeito todos os protocolos relacionados com as entrevistas no âmbito da investigação científica. Algumas pessoas não gostam de falar porque estão a trabalhar e ser entrevistado significa perder tempo. Mas tenho sempre cuidado, vejo os que estão mais disponíveis, mais abertos.
E essa ideia de secretismo permanece no subconsciente?
Sim, no subconsciente permanece. E também são visíveis algumas tensões, não territoriais, mas por exemplo os militares acabam sempre por falar em experiências mais negativas, digamos. O que mais observo é, no entanto, um ambiente simpático de cooperação. Lembro-me por exemplo de ver, na estação chilena, um desenho sobre a história de um bote que salvou um conjunto de militares brasileiros à deriva. E isto é fantástico.
No site do ALIGHT, tem um pequeno teste onde nos é perguntado o que levaríamos se fôssemos para a Antártida. O que responderia?
Ah, a minha resposta é aborrecida, nada emocional. Nunca levei nada de muito pessoal, há muita gente que leva fotografias da família e coisas assim. Não tenho esse perfil. Sempre me preocupei em levar coisas práticas, sempre contei as meias, a roupa interior, todos esses detalhes. A questão da comida também é importante: a alimentação que lá se faz é muito pobre em fibras, então, preocupo-me sempre em levar muitos frutos secos [risos].
Está sempre presente a ideia da Antártida como lugar de recolhimento.
Sim, e de lugar-limite. Costumo até pensar que muitos dos idosos que estão a ir à Antártida fazem-no à procura desse limite. Hoje, tudo está a mudar, há muita informação na internet, mas ir à Antártida é quase como ir à Lua. É como ir a outro planeta, é ir além.