MOBILIDADE

“A cidade dos 15 minutos não é só a mobilidade verde: se quero ir buscar alimentos não pode ser através de um carro”




TERESA MARAT-MENDES

Investigadora  Dinâmia'CET-Iscte

Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território



A alimentação está transformada num serviço, mas o planeamento urbano também deve preocupar-se com os recursos naturais, as matérias-primas – e o caminho que faz aquilo que nos chega à mesa para comermos




Para quem tem estudado a cidade de Lisboa, exige-se começar por perguntar: é lisboeta?

Não, não nasci em Lisboa, nem sou filha de lisboetas. Sou filha de pais e avós alentejanos, de Monsaraz, perto do Redondo. Nasci em Luanda, em 1970. Quando se deu o 25 de Abril, a opção da minha família não foi regressar a Portugal e, por isso, durante uns tempos, ainda vivi entre Pretória e Joanesburgo. Quando voltámos, fui para Aveiro e só depois para a Grande Lisboa. Fiz o liceu em Oeiras, com excelentes professores da área das Artes, sempre pensei que fosse para Escultura… Acabei em Física porque queria perceber como é que o mundo funcionava. Só que depois descobri que a Física não tinha a dimensão estética e criativa que me apaixonava. Fiz o curso de Arquitetura ainda no antigo Convento de São Francisco e foi aí que me senti completamente preenchida, porque continuava a ter a Ciência e, simultaneamente, a criatividade. Para mim, só a estética não faz sentido, preciso de perceber as coisas.

 

Na sua opinião, que características específicas tem a cidade de Lisboa?

A sua localização geográfica, marcada por uma cultura muito específica, que é simultaneamente atlântica e mediterrânica, como dizia Orlando Ribeiro. Lisboa possui ainda outra particularidade: é um cruzamento de gentes do passado, entre mouros, nórdicos e africanos, aqui há de tudo. E o nosso território, as nossas casas e os nossos povoados são uma amálgama dessa gente. Todo esse saber moldou o nosso território e desde há muito que faz dele cosmopolita.

 

Este projeto de investigação nasceu de um outro, sobre hortas urbanas. Mas sobretudo da ideia de que os circuitos da alimentação devem ser tidos em conta nas decisões das políticas?

Deixe-me só explicar um pouco. O meu interesse pela alimentação, agora mais focado nos bairros e também na alimentação de uma cidade de 15 minutos, sempre teve a ver com a questão do planeamento. Como é que, em termos de ordenamento do território, as cidades podem gerir os seus recursos naturais (sendo que a água e a alimentação são os recursos basilares)? Todo o meu passado tem sido dedicado a entender como é que as cidades têm evoluído, o território, a arquitetura, a articulação entre o homem e o meio ambiente. Foi por isso que cheguei ao projeto das hortas, para estudar os recursos naturais e para saber é que a gestão da água foi sendo feita para manter uma certa agricultura diária.

 


Lisboa possui uma particularidade: é um cruzamento de gentes do passado, entre mouros, nórdicos e africanos, aqui há de tudo. E o nosso território, as nossas casas e os nossos povoados são uma amálgama dessa gente




A cidade que temos hoje parece ter-se esquecido disso?

A cidade de hoje parece ter-se esquecido de que também tem que alimentar a sua população. Acomodou a ideia de que alguém está ali com um supermercado ou com o que quer que seja. A alimentação passou a ser como ir ao banco, é só levantar na caixa, deixou de haver contacto com a água, a alimentação, a matéria-prima. As pessoas acabaram por se esquecer, não por uma questão de má-fé, mas porque se foi perdendo uma herança cultural. O Atlas of the Food System [livro da autoria de Teresa Marat-Mendes, Sara Silva Lopes, João Cunha Borges e Patrícia Bento d'Almeida, publicado pela Springer] oferece um mapeamento, focado nos 18 municípios da região de Lisboa, dos recursos e também dos locais onde eles eram transformados. Ou seja, não eram apenas as hortas urbanas e o peixe, mas eram também, por exemplo, as infraestruturas ligadas à seca e à venda do bacalhau.

 

Esse verbo está conjugado no passado, mas também podia ser conjugado no presente, certo?

Sim, claro. Quero mostrar que esse passado não morreu, que está lá, e que há pessoas que ainda vivem dessa atividade primária.

 

Temos uma maior ligação àquilo que se entende genericamente como sendo o mundo rural do que poderíamos pensar?

Sim, o Atlas serviu, aliás, para mapear isso tudo, para mostrar o que já morreu, o que está estagnado, mas que ainda está vivo. E para mostrar que há um potencial para trazer isso no tempo presente. O HAT é olhar para onde vivem as pessoas hoje, evidenciar que a maior parte vive realmente nos subúrbios de Lisboa, num isolamento de acesso ao alimento. Não há autarquias, não há juntas de freguesia, não há bairros que promovam tudo isto. Na pandemia, o número de hortas cresceu não só porque as pessoas tinham tempo, mas também porque o território estava acessível. Por isso, o planeamento e as políticas urbanas têm que olhar para esta frente. O HAT alia a produção de agricultura à cidade dos 15 minutos.

 

Fala-se na cidade dos 15 minutos sobretudo por causa das questões da mobilidade. Como se articula com a alimentação?

É verdade, mas a cidade dos 15 minutos não é só a mobilidade verde: se quero ir buscar alimentos não pode ser através de um carro, como acontece na maior parte dos subúrbios. É preciso assegurar que todos os bairros e subúrbios possam, num raio de 500 metros, a 15 minutos a pé, chegar a estes bens. E não são apenas os subúrbios, na Baixa pombalina, onde pouca gente vive, passa-se o mesmo. No projeto, temos especialistas em agricultura urbana e especialistas na cidade de 15 minutos e trabalhamos para, em conjunto, enformar políticas públicas futuras.

 

No seu entender, a Ciência serve sobretudo para isso, para contribuir para o bem-comum, digamos?

Aristóteles dizia que fazia arquitetura para servir. E eu acho que fazer Ciência é servir um bem comum. É responder a várias problemáticas, e questionarmo-nos. E, para mim, estas problemáticas vêm da sociedade. Fazer Ciência é dar resposta aos problemas da sociedade de hoje, que não são muito diferentes do que já foram.

 

São apenas mais complexos?

Estamos tão em cima deles que ainda não conseguimos ter o afastamento necessário. Mas havemos de responder.

 


A cidade de hoje parece ter-se esquecido de que também tem de alimentar a sua população. A alimentação passou a ser como ir ao banco, é só levantar na caixa, deixou de haver contacto com a água, a alimentação, a matéria-prima




Quando a Ciência Viva a homenageou como uma das cientistas portuguesas a seguir, disse que fazer Ciência “é acreditar num futuro melhor, construído através da partilha de conhecimento, capaz de gerar melhores Habitats Humanos e de defender um bem que é de todos, a Terra”. É um objetivo ambicioso…

Temos que ser ambiciosos. Caso contrário, deixamo-nos abater e não vamos em frente.

 

O HAT também tem uma ligação com empresas?

Este financiamento é muito específico, mas faremos um workshop com empresas. Numa fase mais adiantada, com o know how que sairá daqui, dos parceiros canadianos e dos parceiros suecos, temos empresas na Estónia interessadas em perceber como aplicar estes resultados em soluções de desenho urbano específicas. Temos financiamento para que essas infraestruturas sejam feitas como projeto-piloto.

 

Porque é que é preciso olhar para o “metabolismo” da cidade, como costuma dizer?

São os caminhos – os fluxos, os fluxos de água e os fluxos das pessoas – que fazem com que o metabolismo das cidades opere de determina maneira. Se o metabolismo não está saudável, não funciona. A sustentabilidade é garantir que existe um encerramento dos ciclos materiais. Nunca fomos 100% sustentáveis, mas já fomos mais sustentáveis do que somos. Usávamos os alimentos, usávamos os recursos, fazíamos compostagens para que o ciclo da matéria-prima inorgânica pudesse ser fechado. Hoje, só consumimos, importamos, trazemos os bens, mas esquecemos completamente do que sai daqui. A alimentação também pode ser uma forma de reduzir e de encerrar esse ciclo material. Para quê tanto lixo se podemos pensar como ter casas, bairros e núcleos diferentes?

 

Na questão do lixo, a resposta não tem que ser necessariamente as incineradoras?

Não existe uma só resposta para tudo. Temos que olhar para os bairros, até porque, por exemplo, na região de Lisboa, temos culturas muito diferentes. Podemos ter soluções distintas. O que estamos, neste momento, a fazer é procurar uma panóplia de exemplos e, depois, conforme a especificidade de cada bairro, cada núcleo, cada subúrbio, encontrar soluções para cada caso. Não é só um problema português, mas o que hoje está a acontecer com o planeamento é que se pensa sempre numa solução universal. Corresponde a uma herança da industrialização, é mais barato, temos que ir além desta herança. Não pode ser.

 

É mais barata e mais fácil.

É mais fácil para alguns, mas o bem comum é danificado. Daí este grito pela democracia. A democracia tem que se fazer com diferentes arquitetos e com diferentes soluções, não precisamos de ter todos a mesma linha de pensamento. O projeto é um passo modesto, mas é o que procura fazer.

 

É utópico, como dizem os seus alunos?

A utopia não pode desaparecer. Precisamos de gente criativa. E se não é na universidade que a criatividade se coloca, onde é que ela se vai colocar?

 

E é preciso que os poderes públicos promovam determinadas iniciativas e comportamentos?

Só poderemos ter uma cidade mais sustentável quando a maior parte das pessoas atuar nesse sentido. E se a cidade não promove que todos o façam… O carro elétrico é um bom exemplo, porque é apenas um número reduzido de pessoas. Vivo num bairro de Oeiras dos anos 2000 que tem imensos espaços verdes, mas onde não existe uma horta, uma venda ambulante, um lugar para ir comprar pão. Bati-me por isso, fui à autarquia, mas a câmara diz que não é um assunto deles. Fiquei zangada: licenciar determinado bairro não é só promover o gás, a água e a eletricidade.

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