FLUXOS TURÍSTICOS

“Quando damos informação, as pessoas sentem-se mais confiantes, mais seguras”




RUI NETO MARINHEIRO

Investigador  ISTA-Iscte

Instituto de Telecomunicações



Quantos estiveram numa determinada manifestação? Quantos assistiram a um determinado concerto? Como controlar a afluência de turistas num determinado monumento? O MoniCrowd dá resposta a estas perguntas e, sobretudo, permite gerir os grandes fluxos de gente nas nossas cidades




Como surgiu a ideia do MoniCrowd?

Há já algum tempo que queríamos fazer a monitorização de lugares que são afetados pelo apinhamento (a palavra é um bocado feia, mas não há outra…), foi até antes da Covid-19. O objetivo era simples: ter informação. O primeiro passo é sempre perceber quantas pessoas estão em determinados locais para depois podermos tomar decisões como, por exemplo, movimentar as multidões para áreas menos afetadas. O projeto poderá depois ser integrado nos sistemas de gestão dos municípios e tanto se aplica a uma manifestação, um concerto ou um jogo de futebol.

 

Estão a trabalhar com a Câmara Municipal de Lisboa?

Sim, neste momento estamos a fazer um teste-piloto na Biblioteca das Galveias, no Campo Pequeno. Vamos construir cerca de 20 sensores para, depois, no final do ano, provavelmente, na passagem de ano, fazer um teste final. Isto ainda não está completamente fechado com a câmara.

 

Tem encontrado interesse neste tipo de ferramentas do lado dos poderes políticos, municípios e demais autoridades?

Bastante interesse. No caso da Câmara Municipal de Lisboa, até agora, tem sido usada informação dos próprios operadores de telecomunicações. O problema é que essa informação não só não tem granularidade suficiente, é pouco precisa, como também não é possível obtê-la em tempo real. Por exemplo, quando o Papa Francisco esteve em Lisboa, aquando da Jornada Mundial da Juventude, foi possível obter alguns dados através da Vodafone. Só que estavam muito subestimados, eram para aí três vezes menos do que foi possível observar.

 

Julgo que uma das mais-valias do MoniCrowd é também a qualidade do próprio sensor, certo?

Sim, a primeira versão do nosso sensor até venceu um prémio internacional. Era uma competição com várias universidades e empresas, da Alemanha, Espanha, França, Itália… Havia bastante concorrência, mas de facto o nosso algoritmo de deteção obteve o melhor resultado. Claro que, como nunca estamos contentes, temos que manter o algoritmo atualizado. Nesta nova iteração, tencionamos explorar mecanismos de inteligência artificial que permitam ao algoritmo adaptar-se à evolução tecnológica dos telemóveis.

 

É sempre uma espécie de jogo do gato e do rato?

Completamente. Há sempre evolução tecnológica e, de certa maneira, os fabricantes vão arranjando – e bem – medidas que permitam criar anonimização dos dados. Por outro lado, nós próprios não queremos quebrar a privacidade das pessoas, mas ao mesmo tempo também queremos saber quantos indivíduos estão em determinados locais.

 


Costumo brincar com os meus alunos e perguntar-lhes: qual é a rede mais segura que existe? É aquela que está desligada. A questão é que essa rede não faz nada de útil. Por isso, o compromisso entre liberdade e segurança é sempre difícil de gerir




Esse é sempre o mais desafio, isto é, se fosse na China, era tudo mais fácil?

Estive há pouco tempo na China a dar umas formações e também porque queremos desenvolver um intercâmbio de um programa doutoral na área das tecnologias. Por isso, pude observar que há problemas que lá se resolvem de uma forma que aqui nunca seria viável. Na Europa, precisamos de soluções tecnológicas que não quebrem a privacidade das pessoas. Mas em muitos países isto nem sequer é um problema, resolve-se tudo com câmaras. Na China, numa autoestrada, de 50 em 50 metros, há um pórtico com um flash que nos tira as matrículas… E as pessoas já nem reparam. Como que – como é que eu hei de dizer? – normalizaram tudo isto.

 

Também é uma questão cultural.

A mim chocou-me um bocadinho. Reparei logo na viagem do aeroporto para o hotel e, quando tive a oportunidade de perguntar a um colega chinês, achei que ele já nem se questionava muito. Perguntei o que fazem com aquelas fotografias e ele explicou-me que faziam contagens, controlavam o trânsito e que lá era tudo muito natural.

 

Essa tensão entre segurança e liberdade é inevitável?

É muito difícil porque normalmente a liberdade e a segurança estão sempre em pratos opostos, não é? Sou professor na área das redes, redes de computador, internet e outras. Costumo brincar com os meus alunos e perguntar-lhes: qual é a rede mais segura que existe? É precisamente a rede que está desligada [risos]. A questão é que essa rede não faz nada de útil. Por isso, é sempre um compromisso difícil de gerir.

 

Apesar de se tratar de um projeto da área das tecnologias, também se colocam questões que estão mais relacionadas com a psicologia?

Sim, e temos aliás uma parceria com a cidade de Bamberg, no estado da Baviera, na Alemanha, onde essa questão se coloca de maneira bastante interessante. Têm estado a trabalhar com o sensor deles, mas nós também vamos testar lá o nosso – que, na opinião deles, é melhor do que o deles, nós também achamos [risos]. A cidade tem características semelhantes a Sintra, tem um centro histórico que é bastante sobrecarregado com turistas. Temos valências tecnológicas que vai ser interessante estudar de parte a parte, mas também temos as questões da área da psicologia, da perceção. Em Bamberg, fizeram uns mapas que mostravam os sítios com muito turistas e com poucos turistas. Apresentaram-nos ao público, mas tiveram queixas dos comerciantes.

 

Porquê?

Para os residentes, a presença dos turistas pode ser negativa, porque há muita gente nas ruas e isso atrapalha o dia a dia. Mas os comerciantes preferem que não se passe uma imagem negativa de um centro histórico porque, claro, eles querem lá os turistas para lhes comprarem os produtos. Ou seja, quando passamos a informação, temos que ser neutros, não podemos contribuir para que se passe uma perceção negativa que, eventualmente, possa estar a criar um efeito de rejeição.

 

Como é que isso se resolve, tendo em conta que a Ciência se baseia na verdade dos factos?

Em Bamberg, começaram por usar um código de cores: punham vermelho quando havia muito turismo, verde quando havia pouco. Geralmente, em vez de um código de cores, o que se faz é usar um gradiente, de um azul que é mais azul para um azul que é menos azul… Existem outro tipo de estratégias na parte da psicologia que também pode ser interessante explorar. Até porque, às tantas, uma zona que tem menos gente também pode ser uma zona menos segura…

 

Ter informação é sempre ter poder.

Exato. Geralmente, as pessoas sentem-se inseguras quando não têm controlo da situação. Quando transmitimos informação, elas sentem-se mais confiantes, mais seguras. Temos medo do desconhecido, do escuro e, por isso, se dermos um bocadinho de luz, por assim dizer, isso vai fazer com que as pessoas se sintam mais seguras.

 

 

Como estão a decorrer os testes que estão a fazer em Sintra e em Mafra?

Sintra está a avançar, mas Mafra, entretanto, já soubemos que o projeto não vai avançar. No caso de Sintra, temos quatro ou cinco sensores no Palácio da Pena (houve um que se avariou, temos que o substituir). Também estamos a instalar mais uma antena para, depois, podermos espalhar mais sensores pelo parque (e até sensores de outro tipo). O grande problema, em Sintra, é que 99% das pessoas só vai ao palácio e não ao parque, que também zonas muito interessantes como o picadeiro ou o chalet da Condessa d'Edla. E, quando não se planeia a visita antecipadamente, então, é preciso esperar quatro horas. As pessoas ficam ali concentradas na entrada do palácio, aborrecidas e a aborrecer os outros…

 

Ter informação mais concreta tem permitido, então, fazer outra gestão dos vários espaços?

Sim, Sintra tem desenvolvido um conjunto de iniciativas, que vão desde trilhos a espetáculos de arte equestre, para tentar atrair as pessoas para outras zonas que não apenas o Palácio da Pena. Nota-se que, em geral, as câmaras municipais precisam deste tipo de iniciativas. Financiar ações de ciência de dados e de inteligência artificial pode ser, de facto, uma oportunidade para a Administração Pública.

 


Talvez seja a minha perspetiva de engenheiro… Gosto de implementar, de agarrar na ciência básica e, depois, usá-la em soluções que podem ser-nos úteis – quer no sentido de nos tornar a vida mais fácil, quer no sentido de serem mais baratas


 

No caso de Mafra, que como explicou para já não vai avançar, que dimensões estavam em causa?

Em Mafra, não se trata apenas de uma questão de contabilização. Na minha opinião, o mais interessante no projeto era conseguirmos fazer uma sensorização da totalidade dos espaços. São 1300 e tal salas, é uma enormidade, muito difícil de gerir porque não existem recursos humanos disponíveis para tudo aquilo. Nem faz sentido, não faz sentido mandar uma pessoa ir bater todas as salas, verificar se está tudo fechado, se não há vidros partidos ou janelas mal calafetadas. Além do mais, é um trabalho aborrecido. É por isso que, cada vez mais, precisamos deste tipo de soluções.

 

A Ciência interessa-lhe sobretudo por ter esta aplicação prática?

É verdade, gosto muito de ver as coisas a mexer… Não estou a dizer que as ciências básicas não são importantes, nada disso, são fundamentais para compreendermos o que vamos usar em benefício da Humanidade, digamos. Mas talvez esta seja a minha perspetiva de engenheiro… Interessa-me saber como é que as coisas podem ser utilizadas. Gosto de implementar, de agarrar na ciência básica e, depois, usá-la em soluções que podem ser-nos úteis – quer no sentido de nos tornar a vida mais fácil, quer no sentido de serem mais baratas.

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