Investigadora CIS-Iscte
Centro de Investigação e Intervenção Social
Este projeto pretende fazer o levantamento de que tipo de situações?
A ambição deste projeto é focarmo-nos na pessoa idosa e no seu contexto, para perceber quais os facilitadores e quais as barreiras de adoção das tecnologias digitais com foco na saúde. As tecnologias digitais estão a mudar radicalmente as nossas vidas e isso acontece, de forma muito promissora, no campo da saúde. Temos, cada vez mais, tecnologias que nos ajudam a aceder aos serviços de saúde, através das quais podemos encontrar informação ou conhecer alguns produtos. Como a digitalização dos produtos de saúde é crescente, a preocupação a nível internacional é que todas as pessoas tenham acesso equitativo a esses produtos, serviços e informação.
Na realidade portuguesa o que há, nesse aspeto, a desocultar?
Em Portugal ainda temos populações cujo acesso a tecnologias digitais, em geral, é bastante precário e, por isso, as pessoas não conseguem usufruir dos potenciais benefícios. No momento em que estamos empenhados em mudar tudo para o espaço digital, pode acontecer que essas populações fiquem excluídas. Coloca-se a questão do exercício dos direitos e das obrigações que, no caso dessas populações, fica comprometido. O acesso e uso de tecnologias digitais é mais difícil para certos grupos – é o caso das pessoas mais idosas. Falamos do acesso aos equipamentos e internet, e as limitações no uso podem estar relacionadas com falta de competências de literacia digital – há lacunas que é preciso colmatar –, mas também pode haver falta de intenção ou de motivação da própria pessoa.
Os aspetos tecnológicos e orgânicos da própria tecnologia também podem ser ou não facilitadores?
Muitas das plataformas criadas não são amigáveis para as pessoas com algumas alterações ao nível sensorial, cognitivo ou motor. Se uma pessoa tem 20 segundos para introduzir uma password e tem alguma dificuldade motora não vai conseguir fazê-lo. O projeto Time-to-Engage não se foca nesta temática. Porém, na Noite dos Investigadores, trouxemos esse tema da adaptabilidade das próprias tecnologias para que possam ser utilizadas por todas as pessoas. Dou um exemplo: às vezes, os conteúdos colocados nas plataformas são feitos com letra pequena, com contraste baixo, mudam rapidamente as páginas e quem precisa de um pouco mais tempo, para se apropriar do conteúdo, não consegue fazê-lo. Há plataformas que supostamente eram para ajudar na explicação do funcionamento, mas quem tem pouca literacia digital não consegue utilizá-las.
O que é possível fazer?
Creio que será necessário perceber nesta população de pessoas idosas o que é possível melhorar para terem maior disponibilidade para utilizar essas tecnologias. Por outro lado, há a necessidade de que a tecnologia seja amigável para a pessoa idosa.
Que metodologias aplicam nesta investigação?
Temos um estudo a ser desenvolvido em duas fases. A primeira fase, mais qualitativa, através de entrevistas e workshops com pessoas idosas, em diferentes cidades e aldeias de Portugal (nos quais utilizamos atividades do design thinking), realizados pelos investigadores Cristofthe Fernandes e Ana Rita Medeiros. Tentamos perceber que barreiras se identificam na própria pessoa, mas também no seu contexto. Mesmo na perspetiva da Organização Mundial da Saúde, a limitação no manusear de tecnologias digitais pode estar relacionada com a própria pessoa, como pode estar relacionada com os recursos do próprio contexto. Assim, fizemos um levantamento a nível individual e do contexto. A nossa ideia era ir para várias regiões, para centros urbanos e rurais, para obter várias vozes. Imaginámos que uma pessoa que vive em Lisboa e outra que vive numa aldeia de xisto do interior tenham diferentes perceção do problema.
Se perguntarmos a alguém, de forma direta, quais são as suas dificuldades, ela não vai responder pois, em grupo, é difícil uma pessoa falar das fragilidades. Então, formulámos exercícios de design thinking e pedimos para criarem uma personagem e nos contarem um bocadinho sobre facilidades e dificuldades que essa personagem tem na utilização das tecnologias digitais da saúde – e como o contexto apoia ou, pelo contrário, cria obstáculos na utilização dessas tecnologias.
Haverá, numa fase posterior, um segundo inquérito?
Teremos ainda um outro inquérito que vai ser criado com base no levantamento das necessidades (a partir da análise dos dados qualitativos dos workshops: facilitadores, barreiras, ao nível individual e ao nível contextual). Vamos integrar algumas componentes do European Social Survey porque uma equipa do Iscte, em que está Cristina Camilo, a investigadora co-responsável pelo projeto Time-to-Engage, fez um levantamento prévio em Portugal sobre a aceitação das tecnologias digitais na saúde. Sabemos que possíveis mediadores podem ser importantes para se perceber este fenómeno. O estudo que mencionei foi feito por pessoas que são utilizadores regulares da internet, de todas as idades, e não chegou a estas pessoas que não usam a internet. Dá-nos alguma ideia sobre mediadores e variáveis que devemos considerar, mas imaginamos que haja mais, além disto.
O segundo inquérito será aplicado a nível nacional, calculamos que terá uma amostra de cerca de 700 pessoas, porque queremos fazer estratificação por género, região e idade (com menores e maiores de 75 anos).
Há números sobre as iniciativas concretas desenvolvidas na investigação?
Fizemos 14 workshops, no total entrevistamos 106 pessoas. Nesse aspeto, os dois investigadores doutorandos fizeram um trabalho extraordinário! Agora estamos a analisar essas entrevistas e a utilizar como framework o modelo de comportamento planeado e, no fundo, estamos a decifrar essas entrevistas para perceber o que aconteceu a nível das crenças, das atitudes e ao nível do próprio comportamento. Tentamos encontrar nessas personagens criadas, facilitadores e barreiras, ao nível da intenção-crença-comportamento, no plano individual, e depois vamos cruzar esta informação com facilitadores e barreiras do contexto. Iremos ainda buscar tudo o que as pessoas idosas falaram do digital divide – exclusão digital – para perceber se existe problema com falta de acesso a equipamento e/ou conetividade, falta de competências digitais ou então falta de motivação para fazer. Esta é a primeira fase.
A partir de uma matriz, vamos faremos um instrumento de recolha de dados quantitativos e vamos falar com todas as pessoas idosas que queiram trabalhar connosco, para perceber que tipo de perfis de intenção existem em Portugal. Identificando-os podemos criar recomendações orientadas para os diferentes perfis. Depois, podemos distribuir essas orientações por parceiros, como câmaras municipais, juntas de freguesia, bibliotecas, universidades seniores, centros de convívio – ou seja, todas as entidades que têm como missão trabalhar com pessoas idosas na adoção das tecnologias digitais.
Na volta que o projeto dá pelo país, que localidades e quais as entidades que são parceiras?
Fizemos um levantamento através das instituições: centros de convívio, centros de combatentes, universidades seniores, as associações que fazem estimulação cognitiva, etc. Estivemos em muitos distritos. No Norte, Porto (incluindo Amarante, Povoa de Varzim) e Vila Real. No Alentejo, em Beja e Évora. Em Lisboa e Vale de Tejo, em Lisboa e em Setúbal (incluindo Grândola). No Algarve, em Loulé (Querença) e Faro (Alvor). Na região Centro, em Castelo Branco (Fundão) e Viseu (Castro Daire).
Enviámos imensos pedidos de colaboração. Houve inclusive uma situação muito interessante, em que uma instituição nos respondeu: “Os nossos idosos não usam tecnologias digitais, pelo que não há interesse em participar”. Ora, é isso mesmo que nós queremos perceber. Mas, dessa forma, foi-lhes retirada a voz, não consultaram as pessoas idosas e não tivemos oportunidade de as ouvir.
O projeto revela também que nem sempre se pensa nos utilizadores finais das tecnologias?
Quando se pensa em tecnologias digitais, pensa-se no público que está à-vontade a usá-las. Nem sempre se preparam as plataformas pensando no utilizador final. Muitas vezes os tutoriais que poderiam ajudar têm oito ou dez anos, estão muito desatualizados. Bastava que houvesse o cuidado de alguém colocar a informação mais atual que, enquanto utilizadores, respondíamos de forma mais autónoma. Deveria haver um momento em que cada plataforma de tecnologia fosse testada no utilizador final, para ele dizer “isto não vai funcionar” ou “não estou a perceber o que devo fazer”. Se fosse feito esse levantamento, todo o processo seria mais user friendly. É um mito pensar-se que as pessoas, a partir de uma certa idade, não querem aprender: se tiverem uma necessidade, vão querer aprender. Quando faz sentido, aprende-se. Admito, porém, que o pedido de uma pessoa com pouca escolaridade ou que esteja inativa seja diferente de uma outra que frequenta, por exemplo, a universidade sénior.
Relativamente à equipa, o projeto está assente numa parceria do CIS-Iscte com o CIES-Iscte?
Sim. Do CIES-Iscte tenho a colaboração da investigadora Elsa Pegado, que nos ajuda a olhar para as questões sociológicas importantes. Quando pensamos nas desigualdades ao nível do digital elas estão muito relacionadas com o contexto: temos uma situação muito diferente no Norte, no interior e no Sul do país. Por isso a Elsa Pegado ajuda-nos a olhar para as questões que envolvem a sociedade ou o contexto, de uma perspetiva mais macro.
Como resultado final haverá um livro de recomendações?
Queremos fazer um e-book sobre o projeto, não utilizando linguagem científica, mas linguagem para uma audiência larga, falando do que fizemos, quais os resultados, mas obviamente também com recomendações. Este será o documento para divulgar entre pessoas que têm alguma influência política. Publicamos também artigos científicos. Estes vão ser os dois produtos, dirigidos a audiências completamente diferentes. No fim, pretendemos também fazer um evento presencial com stakeholders. Espero também que, quando este projeto terminar, possa ter continuidade, através de outras fontes de financiamento, para verificarmos depois se as recomendações que produzirmos foram eficazes ou não, se trazem mais-valia, se são aceitáveis.