PATO À PEQUIM SEM FALHAS E COM MUITA CIÊNCIA
Tese de doutoramento que cruza a arte dos restaurantes tradicionais chineses com a ciência avançada de gestão do Ocidente. Mais um caso de sucesso do programa de cooperação do Iscte com universidades chinesas.
CHEN HAN
Doutorado Iscte. Diretor do Departamento de Ensino da Gestão e de Investigação da Arte da Alimentação e Bebidasda Faculdade de Turismo da Beijing Union University.
Imaginemos um buffet de cozido à portuguesa, daqueles que juntam famílias e turistas ao fim- de-semana. O que é expectável? Qualidade dos produtos, sim, boa confeção, também, mas igualmente que os diversos ingredientes sejam devidamente repostos, que a sua temperatura seja estável, que a sala de refeições se mantenha limpa e com bom ambiente, que os empregados de mesa sejam diligentes e que forneçam as informações solicitadas e que, enfim, a conta final esteja correta e compreensível. Ou seja, que a refeição decorra com normalidade, sem falhas de serviço, ou que, a ocorrerem, essas falhas sejam rápida e cabalmente resolvidas. É muito difícil que tudo corra sempre bem. Talvez confiando na sorte, ou, ainda melhor, trabalhando para que isso aconteça.
Chen Han não é especialista em cozido à portuguesa, mas tem a receita para que os restaurantes portugueses possam garantir aos seus clientes uma qualidade de serviço estável e de alto nível.
Nos últimos dois anos, Chen Han, que é atualmente Diretor do Departamento de Ensino da Gestão e de Investigação da Arte da Alimentação e Bebidas da Faculdade de Turismo da Beijing Union University, dedicou-se ao estudo das falhas de serviço e estratégias de recuperação do cliente nos restaurantes tradicionais chineses, tema da tese de doutoramento que defendeu, no verão passado, no Iscte. A investigação incidiu numa cadeia específica especializada em pato à Pequim, a Quan Ju De, mas as suas conclusões e recomendações aplicam-se com proveito a outros tipos de restaurante, na China ou noutras partes do mundo.
“O objetivo da investigação foi o de entender os fatores que conduzem às falhas de serviço, assim como os respetivos processos de recuperação, no setor da restauração, tendo a investigação incidido numa cadeia de restaurantes tradicionais chineses, de propriedade estatal”, afirma Chen Han, em declarações prestadas após a prova de doutoramento.
“Numerosos estudos realizados nos últimos anos investigaram as falhas e recuperação do cliente no sector dos serviços de alimentação em geral, sob a perspetiva dos clientes, gestores e funcionários, mas poucos se concentraram neste tipo de restaurantes, tradicionais e com valor histórico, em que as expetativas na excelência do serviço são as mais elevadas. Estes restaurantes são aqueles que oferecem um forte contexto cultural, serviço exclusivo e uma muito cuidada preparação de alimentos. De alguma forma, na China ou no exterior, eles representam a cultura e o nível de serviço de que o país se orgulha”.
A escolha de Portugal e do Iscte para realizar o doutoramento é muito clara: “Portugal é um país que incentiva a criatividade e a inovação, mas que também abraça a diversidade e as diferenças culturais. Além disso, o estilo de vida agradável e o facto de as pessoas serem muito acolhedoras foi um importante fator de decisão, mas constituiu também um ambiente muito propício ao desenvolvimento do meu estudo. Quanto ao Iscte, considero que é uma das universidades mais dinâmicas e inovadoras de Portugal, com forte ênfase na internacionalização e com uma reputação de prestígio na China”, afirma Chen Han.
“Durante o período em que decorreu o meu programa no Iscte, senti a paixão de cada membro do corpo docente nele envolvido. O entusiasmo deles foi a minha motivação para continuar os meus estudos. Além disso, os colegas de curso tiveram um papel chave na expansão do meu conhecimento, devido aos diferentes campos de trabalho a que se dedicavam. Por último, mas não menos importante, a minha orientadora do Iscte, Virginia Trigo, propôs-me toneladas de sugestões quando tive dificuldades. Graças à sua paciência e experiência, pude concluir com êxito a minha tese a tempo.”
A cadeia de restaurantes selecionada, a Quan Ju De, foi fundada em 1864 e detém atualmente 40 unidades, em 16 cidades chinesas, especialmente na capital, onde existem 19 restaurantes da marca. A especialidade servida é o famoso pato à Pequim, com a particularidade de utilizar uma técnica, com forno suspenso, classificada, em 2008, como herança cultural intangível da China. Esta cadeia orgulha-se de cumprir as etapas e procedimentos tradicionais do serviço de pato à Pequim: corte do pato em 108 peças, por um chefe de sala, em frente ao cliente; uma apresentação variada e complexa dos acompanhamentos; finalmente, a competência linguística necessária para ir informando acerca da melhor forma de desfrutarem de um dos mais tradicionais pratos chineses.
Este tipo de restaurantes ficou sob enorme pressão, nos últimos anos, com a criação de uma classe média na China, ávida de consumo e cada vez mais exigente, mas igualmente devido ao crescimento do turismo. Por outro lado, o facto de se tratar de uma atividade com uma longa história poderá conduzir a uma certa rotina e acomodação, indiferente à competição e às avaliações e oscilações da clientela.
Durante o período em que decorreu o meu programa no Iscte, senti a paixão de cada membro do corpo docente nele envolvido.
A investigação realizada no âmbito do doutoramento centrou-se em cinco áreas:
— que tipos de falhas de serviço podem surgir
— as causas das falhas de serviço, na ótica do
consumidor e dos empregados
— que canais utilizam os clientes para apresentarem as suas reclamações
— que respostas dá o restaurante às falhas
que ocorrem
— como perceciona o cliente essas respostas
Para cada uma destas questões, há literatura e teorias estabelecidas, mas que, no entanto, necessitavam de ser postas à prova no ambiente dos restaurantes tradicionais chineses.
“Vários conceitos teóricos que foram desenvolvidos ao longo dos anos sobre a qualidade do serviço foram utilizados nesta tese, mas também analisei o assunto no âmbito da Teoria da Justiça, de forma a entender o efeito de um tratamento justo das reclamações sobre as diferentes partes envolvidas: clientes, gestores e funcionários”, afirma Chen Han.
Durante o trabalho de campo, e tendo em conta as pistas lançadas por dezenas de artigos sobre o tema, foi decidido valorizar de igual forma os estudos empíricos baseados em inquéritos estatísticos, com os estudos qualitativos resultantes de entrevistas, observações participativas, registos de arquivo, documentação, resultados de grupos de reflexão, ou mesmo artefactos físicos.
O estudo de caso levou em conta que, em contexto real, os comportamentos humanos são de difícil previsão e que os erros humanos são inevitáveis.
Por último, foi aplicado um questionário, com recurso à Critical Incident Technique (CIT), através da qual se recolheram informações detalhadas sobre várias falhas de serviço e estratégias de recuperação, de forma a estabelecer uma tipologia.
Em resultado dessa análise, os 25 tipos de incidentes catalogados foram agrupados em cinco categorias: comida, serviço, ambiente, clientes problemáticos e barreiras linguísticas. Os três primeiros tipos já surgem perfeitamente identificados na literatura existente sobre esta matéria, mas os dois últimos são novidade: os clientes problemáticos são geradores de tensão e, do ponto de vista dos funcionários, potenciais causadores de falhas de serviço; a questão da língua começa por se colocar de um ponto de vista doméstico, devido aos dialetos, mas envolve obviamente línguas estrangeiras, sendo que o desentendimento com base na língua pode ser um forte fator de desentendimento e de frustração de expectativas.
O trabalho identifica igualmente cinco meios através dos quais os clientes apresentam a sua reclamação, que pode ser imediata, no local, ou mais dilatada no tempo, por exemplo, através de email.
Quanto às estratégias de recuperação do cliente, elas são muito diversas – desde um pedido de desculpa até à ativação em redes sociais, ou mesmo cortes salariais ao responsável pela falha -, sendo que o estudo identifica 16 tipos, distribuídos por sete categorias.
“Vários novos tipos de falhas e de recuperação do cliente foram identificados neste estudo. Além disso, as conclusões a que cheguei permitiram-me propor um novo método de codificação das categorias de falhas de serviço, que consiste num sistema de codificação sequencial, o qual fornece uma melhor compreensão do que motivou a falha. Essa abordagem terá aplicações muito importantes, nomeadamente na formação de novos funcionários e num trabalho permanente de prevenção das falhas de serviço”, afirma Chen Han.
Em relação aos muitos outros estudos realizados sobre esta matéria, mais focados nas falhas materiais, esta investigação colocou em evidência a relevância de fatores como as diferenças linguísticas, e mesmo culturais, assim como na importância da estratégia de recuperação, a qual pode ser determinante para a manutenção da preferência do consumidor pelo estabelecimento, ou, pelo contrário, para o afastamento, caso essa estratégia de recuperação tenha sido mal sucedida.
“Os restaurantes históricos que o tempo consagrou partilham semelhanças de operação, pelo que os resultados deste estudo podem influenciar outros restaurantes similares na China e no exterior. Manter um alto nível de qualidade de serviço e lidar adequadamente com as falhas é um desafio para todos os setores de serviços, que também podem beneficiar dos resultados deste estudo”, considera.
Como desafio para investigação futura, o novo doutorado do Iscte deixa a pista de um estudo comparativo mais vasto, que possa incluir, por exemplo, restaurantes tradicionais chineses e portugueses, de forma a estabelecer padrões ainda mais exatos de falhas de serviço e estratégias de recuperação do cliente.
全聚德
QUAN JU DE
CRITICAL INCIDENT TECHNIQUE
questionário realizado aos clientes
1 Teve uma experiência insatisfatória no restaurante Quan Ju De?
2 Descreva detalhadamente o que aconteceu.
3 Qual foi a primeira avaliação do incidente?
4 Apresentou reclamação? Como o fez?
5 Descreva as medidas que o restaurante tomou para resolver a situação
6 Qual a sua avaliação do processo de reclamação e da recuperação do cliente?
DEZ ANOS DE INTERCÂMBIO COM A CHINA
Os programas de doutoramento do Iscte para estudantes chineses completam este ano uma década. Iniciaram-se em 2009, primeiro em colaboração com a University of Electronic Science and Technology of China (UESTC), uma importante universidade tecnológica pública, localizada em Chengdu, no Oeste da China, e logo a seguir em colaboração com a Southern Medical University (SMU), uma também importante universidade médica, localizada em Cantão, no Sul do país. Ambos os programas estão oficialmente acreditados pelo Ministério da Educação da China, o que os torna muito prestigiados e procurados: atualmente uma média de cinco alunos candidata-se a cada vaga aberta. Ao longo destes 10 anos, cerca de 450 alunos já se inscreveram e 150 já se doutoraram no Iscte. Estes alunos constituem uma elite na sociedade chinesa, são gestores de topo em grandes empresas estatais ou privadas, presidentes de hospitais e instituições de saúde, empreendedores de jovens empresas com grande nível de crescimento. São pessoas em lugares de decisão estratégica, que, através do Iscte, ficam a conhecer melhor Portugal, potenciando as relações culturais, sociais e económicas entre ambos os países.