PONTE

As Ciências Sociais como ponte




José Mariano Gago

(1948-2015)




A necessidade de criar um quadro de referência que permita integrar as Ciências Sociais, em moldes adequados, na política científica e tecnológica europeia, é hoje amplamente reconhecida. Em resultado das mudanças rápidas e complexas que acontecem nas nossas sociedades, têm emergido questões novas e urgentes que, para serem resolvidas, vão exigir investigação básica e aplicada.

 

Sem a contribuição das Ciências Sociais, a ciência, a tecnologia e a política europeia de ciência não poderão avançar e enfrentar com sucesso os novos desafios da competição, complexidade e incerteza. Sem as Ciências Sociais, a ciência e a tecnologia estarão incompletas, quanto mais não seja devido ao facto de elas próprias serem construções sociais que exigem reflexão adequada. Além disso, sem um desenvolvimento amplo das Ciências Sociais, limitaremos a contribuição da Europa para um mundo mais progressivo em termos económicos e culturais.

 

As Ciências Sociais estão numa posição privilegiada para abordar – tanto do ponto de vista teórico como prático-organizacional – as questões colocadas pelas mudanças socioeconómicas resultantes do avanço das tecnologias de informação e comunicação, do retrocesso da indústria transformadora e da crescente marginalização, nesses processos, de comunidades e indivíduos.

 

As Ciências Sociais encontram-se também numa posição privilegiada para oferecer uma perspetiva reflexiva e crítica sobre várias questões atuais, sendo esta perspetiva crucial para a formulação de políticas e crucial para a compreensão do processo de decisão política. Só com acesso a Ciências Sociais de ponta podem os políticos europeus evitar soluções tecnocráticas e burocráticas para problemas complexos e ter capacidade para detetar e prever problemas com antecedência suficiente para evitar catástrofes.

 

As Ciências Sociais permitem não só aumentar o potencial social e económico do saber na sociedade baseada no conhecimento, como identificar os problemas que herdámos das sociedades industriais. Os contributos das Ciências Sociais permitirão lidar com os processos sociais complexos envolvidos nos processos de inovação e facilitar a aplicação da inovação na resolução de velhos problemas.

 

Usando uma analogia arquitetónica, recorreremos à palavra "ponte" para representar as ligações possíveis entre as Ciências Sociais, as necessidades de conhecimento e as exigências societais.

 


Só com acesso a Ciências Sociais de ponta podem os políticos europeus evitar soluções tecnocráticas e burocráticas para problemas complexos e ter capacidade para detetar e prever problemas com antecedência suficiente para evitar catástrofes



1. Ponte entre as Ciências Sociais e os problemas socioeconómicos

Enfrentamos hoje dois tipos de problemas societários. Por um lado, os que resultam da persistência de características socioeconómicas da sociedade industrial. Por outro, os que emergiram com as sociedades pós-modernas baseadas no conhecimento.

 

As questões do desempenho económico, do crescimento e da concorrência industrial europeia continuam a ser centrais, mas colocam-se a par das que resultam da existência de elevadas taxas de desemprego e de problemas urbanos como o crime, as drogas, o desemprego e marginalização juvenis e o stress urbano. Continuam por resolver os problemas da desigualdade, da pobreza e do analfabetismo funcional.

 

Apercebemo-nos de que o desenvolvimento industrial e tecnológico não pode ser olhado independentemente das suas consequências sobre o meio humano e físico. Novas formas de conceber e promover um desenvolvimento sustentável têm de ser consideradas.

 

Com a transformação da sociedade industrial numa sociedade baseada no conhecimento, novas mudanças sociais e económicas necessitam de atenção. Mudanças induzidas pelo advento da sociedade da informação alteraram a interação social e as atividades de lazer (dos jogos de computador à navegação na internet), introduziram novos processos de aprendizagem (o conhecimento nas pontas dos dedos) e tornaram o mundo muito mais pequeno (pela comunicação rápida). O trabalho e o emprego continuarão a mudar pelo que necessitaremos de novas competências e de novos modos de organização. Acresce que, na nova sociedade de informação, alteraram-se as perceções sobre o risco e a incerteza quanto ao futuro.

 

2. Ponte entre as Ciências Sociais e outras disciplinas científicas

Descobertas científicas recentes estão a mudar de forma dramática a nossa perceção do mundo da vida. Colocam-se questões complexas em resultado dos avanços da ciência, como as que se referem à utilização da biotecnologia, à engenharia genética e ao projeto de mapeamento do genoma humano. Milhares de embriões encontram-se congelados em centros médicos à espera de uma decisão sobre a sua utilização. As inúmeras possibilidades introduzidas pela clonagem colocam-nos perante novas opções sobre os modos de reprodução. Todas estas descobertas médicas suscitam questões éticas, legais e sociais. Uma ética de responsabilidade, inclusive de responsabilidade sobre o futuro, precisa, pois, de ser construída.

 

Além das questões e dos riscos associados aos desenvolvimentos recentes nas ciências da saúde, emergem novas preocupações ambientais questionando ainda mais a nossa relação com o mundo vivo. O questionamento dos alimentos que comemos, da água que bebemos e do ar que respiramos levou ao reconhecimento da necessidade de modos sustentáveis de desenvolvimento. O desenvolvimento industrial descontrolado contribuiu para o aquecimento global, a poluição industrial e agrícola e outros inúmeros efeitos negativos sobre o meio ambiente. Problemas como o crescimento urbano e o congestionamento exigem soluções limpas e expeditas. A organização do espaço físico e social – que afeta as cidades, a habitação, o transporte e os locais de emprego – introduz novas questões sociais, económicas, técnicas e de engenharia. A cidade do futuro tem de ser pensada hoje.

 

As novas tecnologias de informação e os sistemas de comunicação por satélite, a internet e o correio eletrónico alteraram os padrões de trabalho, de lazer, de comunicação e de acesso à informação. As implicações sociais e cognitivas destas novas tecnologias têm ainda de ser esclarecidas.

 

A investigação interdisciplinar, envolvendo a articulação entre Ciências Sociais e Ciências Naturais e da Saúde, pode desempenhar um papel importante no tratamento de algumas destas questões. Uma abordagem holística permitirá compreender melhor não só os mecanismos sociais, económicos e políticos envolvidos como as atitudes sociais e comportamentais, constituindo ainda um importante contributo para a tomada de decisão política. Em áreas como as do meio ambiente, saúde e desenvolvimento tecnológico, os cientistas sociais deveriam trabalhar com colegas das ciências naturais, da saúde e da engenharia e contribuir para a criação e transmissão de conhecimento em resultado da uma melhor compreensão dos mecanismos e práticas sociais envolvidos que assim se conseguiria. A investigação nas Ciências Sociais pode proporcionar conhecimento importante sobre as práticas sociais.

 

3. Ponte entre as Ciências Sociais e os objetivos e as necessidades das políticas públicas

A política científica e tecnológica requer a contribuição de diversos atores sociais e políticos, assim como de especialistas técnicos, de políticos a funcionários públicos, cientistas e público em geral. A formulação de políticas públicas já não está circunscrita às fronteiras nacionais. No contexto europeu, novas fronteiras políticas e instituições têm sido criadas e redefinidas, ou estão em vias de o ser.

 

A incerteza sobre o mundo em que vivemos e a desconfiança nas nossas instituições políticas podem ter repercussões negativas que precisam de ser tratadas. A desconfiança no funcionamento das instituições políticas democráticas pode fomentar um crescimento dos movimentos autoritários de extrema-direita em toda a Europa. A instabilidade política e o conflito armado persistem mesmo no interior da Europa. Os decisores políticos têm de tratar estes problemas e fomentar a confiança no processo democrático e nas instituições políticas europeias. Um novo papel para as Ciências Sociais será ajudar a redefinir as políticas públicas europeias.

 

A difusão e transmissão do conhecimento e da informação, não só através do nosso sistema educacional, mas também dos meios de comunicação social, têm aumentado a disponibilidade de informação sem que, no entanto, isso se traduza numa redução das perceções de risco e de incerteza. As Ciências Sociais podem contribuir para a análise de novos tipos e formas de comunicação com o público em geral. É, pois, necessário estabelecer um diálogo entre cientistas sociais e decisores políticos. Mudanças nas políticas não podem ser travadas por atitudes de resignação.

 

A contribuição das Ciências Sociais para a decisão política inclui a integração dos resultados da investigação na formulação das políticas e no desenvolvimento socioeconómico. As interfaces de I&D entre universidades, centros de pesquisa, governo e empresas envolverão trocas e redes mais inovadoras, sistemas de gestão mais flexíveis e uma maior mobilidade do capital e dos recursos humanos. Questões complexas como as que se prendem com a apropriação do conhecimento terão também de ser enfrentadas.

 

4. Uma rede de pontes

Os tempos que vivemos exigem novos diálogos e novas formas de comunicação. Estes, por sua vez, resultam da perceção de que necessitamos de um novo conhecimento sobre a sociedade que reconheça a complexidade e a imprevisibilidade dos mundos natural e social. Necessitamos de programas de investigação orientados para a reconceptualização das noções de irreversibilidade tanto como das noções de aleatoriedade e complexidade intrínsecas ao mundo natural e social. Necessitamos de conhecimento que proporcione respostas mais precisas para as questões complexas que hoje enfrentamos.

 

As Ciências Sociais enfrentam o desafio da construção de novos objetos de investigação que incluam não só o desenvolvimento de perspetivas de pesquisa inovadoras, mas também a criação de bases de dados europeias e de temas de investigação europeus. O objetivo deveria ser ir para além da pesquisa comparativa e constituir a realidade e a identidade europeias em objetos de pesquisa. A investigação em Ciências Sociais necessita de redefinir o seu objeto em linha com o atual processo de construção europeia. As fronteiras nacionais já não limitam as trocas económicas e culturais, pelo que as Ciências Sociais têm de redefinir o seu objeto de investigação em linha com essas mudanças.

 

É ainda necessário abordar as questões regionais no âmbito da Europa, bem como a identidade cultural e social europeia. Formas supranacionais de tomada de decisão estão a substituir o Estado-nação, mas persistem identidades nacionais social e culturalmente incorporadas. Continuam a fazer-se sentir forças culturais envolvendo identidades étnicas e regionais.

 

A rede de pontes construída pelas Ciências Sociais poderá ajudar-nos a constituir as necessárias conexões entre desenvolvimento de novos conhecimentos e necessidades societais, fazendo convergir os interesses da comunidade científica, dos decisores políticos e do público em geral na resposta a pressões políticas, económicas, ecológicas e sociais.

 

Para criar as bases de uma comunidade científica europeia, é necessário o desenvolvimento de programas de intercâmbio e de redes de cientistas sociais. Uma comunidade científica europeia que não seja limitada a alguns temas ou a algumas disciplinas científicas, mas que cubra toda a gama de interesses científicos e contribua para a melhoria da educação e da formação.

 

O desafio que se coloca é redefinir o objeto das Ciências Sociais, o qual não pode continuar limitado pelas fronteiras nacionais, antes deve ser adaptado tendo em conta a nova realidade resultante das mudanças provocadas pelo advento das tecnologias da informação e pelo processo de europeização. Esta questão coloca uma outra: quais as consequências de introduzir as Ciências Sociais na agenda política europeia de ciência e tecnologia? As mudanças que vivemos exigem alterações na perceção dos problemas e nas formas da sua resolução. As Ciências Sociais podem contribuir para um novo desenho das novas estruturas de que necessitamos, edificando as pontes que permitem ligar os diferentes atores sociais, escavando os novos túneis críticos e construindo as rodovias reflexivas de alta tecnologia em direção ao futuro.

 



O texto As Ciências Sociais como ponte, de José Mariano Gago, que aqui reproduzimos, foi inicialmente publicado, em inglês, num livro intitulado The Social Science Bridge (1998). O livro resultou de uma reunião internacional organizada na Lapa, em Lisboa, a 4 e 5 de abril de 1997, com o propósito de mobilizar e promover a cooperação entre as Ciências Sociais e os decisores políticos na Europa.

 

A Comissão Europeia tinha apresentado o documento-base para o 5.º Programa Quadro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico (PQ5), que concentrava todas as prioridades em áreas tecnológicas (key actions), excluindo as Ciências Sociais. Neste contexto, o então ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, organizou o encontro da Lapa com ministros socialistas da Ciência, a Comissária Europeia de Investigação, representantes da Fundação Europeia da Ciência, do Parlamento Europeu e um conjunto de investigadores europeus de várias áreas das Ciências Sociais. Participaram investigadores como John Ziman, Paul Caro, Rob Hagendijk, Guido Martinotti, Peter Weingart, Fernando Gil e João Ferreira de Almeida, entre outros.

 

A discussão centrou-se em torno de quatro temas: a política europeia de investigação e as Ciências Sociais; ciência, cultura e comunicação; investigação interdisciplinar, e cidadania e instituições europeias. O encontro refletiu o empenho político e pessoal de José Mariano Gago para que as Ciências Sociais tivessem uma key action dedicada ao tema Improving the human research potential and the socio-economic knowledge base, no PQ5 (1998-2002).

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