Investigadora CEI-Iscte
Centro de Estudos Internacionais
Qual é o objetivo do Ecoprise Designer?
No fundo, o objetivo do Ecoprise Designer nada mais é do que adaptar uma formação que já existia anteriormente, o Ecovillage Design Education, para formar pessoas que queiram desenvolver projetos com o mesmo caráter, com a mesma abordagem sistémica e regenerativa, mas que vão para além do nicho das ecoaldeias.
De onde nasce essa necessidade?
Nos últimos anos, tem havido um grande debate dentro do movimento das ecoaldeias. O debate está relacionado não só com pesquisas académicas e com certas críticas, construtivas, feitas pelo jornalismo de investigação que se tem dedicado a esta área, mas também pela experiência do próprio movimento das ecoaldeias. Sem querer, as ecoaldeias tornaram-se um meio muito exclusivo. Quase como se fosse necessário ter uma posição privilegiada dentro do sistema para criar alternativas ao sistema que se critica...
Portanto, estava tudo a funcionar em círculo fechado.
Exato. Por isso, o objetivo de projetos como o Ecoprise é abrir esse círculo. Tornar o conhecimento, desenvolvido dentro do movimento das ecoaldeias nas últimas décadas, que é muito rico e que tem um grande potencial de mobilização e de transformação, acessível a muito mais pessoas.
Em que é que consiste e que importância tem, de facto, esse conhecimento acumulado?
Trata-se de uma abordagem com quatro vetores, económico, social, institucional e aquilo a que eles chamam de espiritual, mas que também pode ser chamado de cultural. É uma abordagem baseada nos princípios da permacultura, isto é, em princípios baseados na sinergia e não no extrativismo, acessíveis ao resto da população. No fundo, o Ecoprise Designer consiste em traduzir todo este palavreado, através de uma formação que chegue a outras experiências, outros modos de estar e outros ambientes. É importante mostrar que não é necessário uma pessoa ir para uma comunidade intencional ou para uma comunidade tradicional para desenvolver laboratórios ou outros futuros possíveis.
O que é que isso quer dizer?
Que tudo isso também pode acontecer na universidade, nos bairros, nas empresas – e aliás também tem como objetivo transformar a própria ideia de empresa. É preciso passar de uma visão completamente instrumental e extrativista para uma visão baseada na simbiose entre os vários elementos e na troca entre os vários stakeholders.
Isto é muito ambicioso ou é utópico?
Não é ambicioso nem utópico. Podemos dizer que tem em vista um u-topos, no sentido de algo que ainda não existe, mas que é algo que pode ser progressivamente realizável. Há uma autora que admiro muito, a Vanessa Machado de Oliveira, que é de origem brasileira mas que trabalha na Univerdade da British Columbia, no Canadá. Ela escreveu um livro fabuloso chamado Hospicing Modernity, onde desenvolve a ideia de é necessário fazer um trabalho de compostagem dentro das instituições que herdámos do Iluminismo e da grande narrativa da modernidade, como o Estado e a sua burocracia, as universidades, as empresas tal como as conhecemos. É preciso transformá-los em algo diferente, em algo de novo.
Isso não é uma maratona?
Sim, claro que é uma maratona, mas é uma maratona que é possível realizar. É aliás assim que têm acontecido as grandes transformações sociais, as mudanças de paradigma. Não se fazem de um dia para o outro, é um trabalho de formiguinha, feito nas margens que, depois, entra no mainstream e nas instituições que compõe o sistema. Penso na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, no papel do Renascimento, no papel dos díspares atores e nas alianças que se criam entre eles…
O livro de que fala chega aí?
Não, eu é que estou a pensar, enquanto converso consigo. Penso nos quatro meses que passei em Florença, em 2021 e em tudo o que aprendi por lá. Penso na Renascença e em como a Renascença nasceu muito antes, na Alta Idade Média. Penso também na Península Ibérica e no Emirato de Córdoba. Foi a presença árabe na Europa que manteve a herança helenística, o estudo de Aristóteles e de muitos outros autores que, de outro modo, teriam sido completamente apagados pelo dogma religioso dos reinos cristãos.
A transformação faz-se por dentro, porque o oposto é próprio dos regimes autoritários.
Exatamente, todas estas entidades, que aparentemente nada têm a ver entre si, aos poucos, foram corroendo o statu quo por dentro. O que terminou com a Renascença italiana, com aqueles anos magníficos dos Médici, foi Girolamo Savonarola e o seu fundamentalismo religioso: vamos limpar isto tudo! Soa familiar, não soa? [risos] O Ecoprise Designer é uma formação, um instrumento entre vários, mas quem promoveu o Global Ecovillage Network foi um senhor que trabalhava na Alta Finança, nos EUA. Foi J. T. Joss Jackson, um canadiano que veio viver para a Europa, para a Dinamarca, depois de várias experiências transformadoras, de explorar certas tradições espirituais e de refletir profundamente sobre o sentido da vida. Joss Jackson, também com a influência da sua mulher, Hildur Jackson, uma grande líder feminista, resolveu pôr todo o dinheiro que tinha ganhado no desenvolvimento da rede global de ecoaldeias, através do Gaia Trust.
As mudanças no mundo do trabalho, produto de uma brutal aceleração tecnológica, obrigam-nos a esta abordagens transdisciplinares e até mais criativas?
Sim, mas isso não significa que o Ecoprise Designer e estas abordagens apoiem uma visão completamente neoliberal e individualista do mundo do trabalho e das empresas. Pelo contrário: o objetivo é redescobrir como criar redes de entreajuda, criar comunidade, sinergias entre os vários stakeholders de um projeto.
Não esquecendo o bem-comum?
Mais do que isso: mostrar até que a maximização do interesse individual é indissociável da maximização do interesse coletivo.
Quer explicar melhor?
Se olharmos na perspetiva do longo prazo, algo que faz muita impressão a quem tem preguiça intelectual e a quem busca respostas imediatas, vemos que o extrativismo leva ao empobrecimento geral. Conduz não só à destruição do meio ambiente e das sociedades, mas também conduz a que os empreendedores alfa, que vencem na selva capitalista e que se tornam os líderes da cadeia alimentar, acabem por fazer haraquiri. Porquê? Porque a visão linear e extrativista não promove o retro feeding, isto é, leva à criação de desperdício que não é internalizado no sistema. Precisa sempre de extrair mais, mais e mais, embora a dada altura já não haja mais nada para extrair.
E a chamada economia circular?
Mesmo a economia circular é apenas uma adaptaçãozinha. Metemos o lixo no sistema e já está? Não, é preciso ir muito mais além, é preciso mudar mentalidades, a forma como se estabelecem as relações entre os vários stakeholders. Por isso, o foco do Ecoprise Designer é na qualidade das relações que se estabelecem entre os vários componentes do empreendimento, de uma organização ou de uma comunidade. Pergunta-me: e os resultados, então, não importam?
Bom, teríamos que definir o que são resultados.
Exato, também é uma questão de definir o que são resultados. A folha de balanço é apenas um dos resultados. Também é essencial atender à qualidade das relações, à resiliência dessas relações e, no fundo, temos que ir para lá desta visão meramente cartesiana, quantitativa, linear. Precisamos de uma visão sistémica.
O que vai acontecer nos projetos-piloto que vão realizar?
Fizemos uma grande campanha de recrutamento nos vários países europeus que integram o consórcio. Teremos uma série de aulas, exercícios online e também visitas de estudo. De Portugal, pela qualidade dos projetos apresentados, serão selecionados quatro alunos que, depois, irão à Lituânia para uma ação de formação que vai concluir o projeto-piloto.
Como têm lidado com as assimetrias entre os vários países?
Muito bem, o que temos feito é assumi-las. Por exemplo, as organizações italianas estão baseadas na Sicília, trabalham com o movimento anti Máfia e apoiam organizações de base comunitária cujo objetivo é criar resiliência social e económica contra a Máfia. Há inclusivamente uma organização que está a usar bens que foram expropriados da Máfia para desenvolver este tipo de projetos.
A ideia é sempre trabalhar a partir de baixo e não aceitar desenhos de sociedade a partir de cima?
Sempre, o que obviamente é mais complexo. Há uns tempos, estava na Geórgia quando ouvi um senhor francês, enfermeiro de profissão, dizer que as pessoas são muito mais felizes quando não têm que pensar muito. É verdade, a liberdade exige pensamento. Nos regimes autoritários, é tudo simples, as pessoas não precisam de fazer grande esforço, é só estarem na linha e já está.