CULTURA

Dar centralidade à cultura das periferias



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PEDRO COSTA

Professor Iscte Ciências Sociais e Humanas

Investigador e Coordenador Cidades e Territórios Dinâmia’CET‑Iscte


Organizações de dez países, liderados por Portugal através da Artemrede e com participação do
Dinâmia’CET-Iscte, procuram reforçar a capacitação dos agentes culturais do sul da Europa com abordagens participativas.



Quais são os objetivos deste projeto que assenta numa coligação de países do sul?

A coligação propõe‑se colocar na agenda as especificidades do sul e periferia, em relação ao centro da Europa, no campo cultural. Trata‑se de um projeto apoiado pelo programa Europa Criativa da União Europeia, que combina a dimensão da investigação com a intervenção mais criativa: associamos a criação artística à ciência também com a componente de investigação, mas o core é a criação artística.
Esta “Coligação do Sul” reúne Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia, Eslovénia, Sérvia, Croácia, Hungria e Roménia, países do sul da Europa e dos Balcãs. Na prática, são 15 parceiros (onze parceiros criativos e quatro universidades), alguns são redes culturais ou redes de municípios, temos um centro de residências artísticas em Itália, um festival, seis estruturas de criação e três redes. Estes projetos são muito exigentes, em termos de project meeting, gestão de projetos.

 

Como é trabalhada essa criação artística?

O projeto assume três vertentes de atuação. Uma, a criação artística propriamente dita, na vertente de estratégias colaborativas entre parceiros que resultam em novas criações. Como podemos ter colaboração entre parceiros criativos, e estes e as comunidades? De que forma os vamos envolver na criação artística?
O segundo pilar é o de capacitação das pessoas, ou seja, estando a trabalhar com agentes culturais, várias universidades, pessoas em vários países, a ideia concretiza‑se na realização de um conjunto de atividades, como workshops – aqui no Iscte estamos a desenvolver dois toolkits. Basicamente trata‑se de dar ferramentas para quem está no terreno refletir e atuar em termos culturais e artísticos, na organização das próprias instituições culturais, na relação dos públicos, no conhecer os públicos. A terceira vertente vai tentar influenciar políticas europeias e, para isso, realizam‑se duas grandes conferências. A primeira já aconteceu, aqui no Iscte, e a segunda será na Sérvia, no final do projeto. Está também prevista a publicação de um livro. Há ainda o propósito de, nas diversas atividades, seja a nível nacional ou da União Europeia, tentar advogar para que mudem as políticas favorecendo que se tornem estas periferias em centro.


Quando se fala em periferias, é no sentido literal?

Quando falamos em periferias falamos do sul ao norte da Europa, mas falamos também do Sul global em relação ao Norte global, ou também incluindo as assimetrias dentro dos próprios países. A maior parte destas instituições não estão no centro, ou nas capitais e, mesmo nesse caso, trabalham com comunidades periféricas. Bom exemplo disso é o próprio líder do projeto, a Artemrede, que é uma associação de municípios, que vai de Pombal até Palmela, a Abrantes, e trabalha muito nas periferias das cidades, ou com comunidades menos centrais.


No âmbito do projeto, no Iscte preparam‑se dois toolkits. De que se trata?

Um deles é um instrumento para monotorização das audiências, para conhecer públicos. Assenta numa “matriz” numa plataforma informática, que se pode utilizar em oito línguas, onde vamos acumulando os dados que contribuem para conhecer o público. Este é um trabalho de construção conjunta: a matriz está a ser testada e aperfeiçoada com questões relativas a vários países. O outro toolkit tem a ver com a questão da qualidade da participação. Estes são projetos ancorados na ideia de participação das comunidades a vários níveis. Temos hosting communities, que acolhem os artistas nos seus processos criativos, e estes vão trabalhando em dois países diferentes; em alguns casos também num terceiro, o tal centro de residências artísticas em Itália. Trabalham com a comunidade, desenvolvem e apresentam na sua comunidade, e noutro país. Essa é uma forma, mas pode haver processos participativos a outros níveis. Estamos a fazer também um outro toolkit sobre como perceber a qualidade na participação, como fomentá‑la, como avaliá‑la, e esperamos apresentar esta caixa de ferramentas em Lisboa, num workshop agora em maio, a qual fica disponível depois do projeto.


Pedro Costa


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Quais são as ideias chave que orientam o desenvolvimento deste projeto?

A produção artística está organizada em doze tandems de criação, isto é, um parceiro de um país, outro de outro país. Nessa combinação de dois parceiros, faz‑se uma call em que são escolhidos artistas; o artista vai trabalhar nas duas comunidades/dois países e, depois, estreia a criação também nas duas comunidades de países diferentes. Esses tandems estão organizados em seis grandes temas, que tentam questionar a prática artística no sul da Europa. Os temas são estes: Work and Hapiness, Having a Voice, Connecting Dots, Bridging the Gap, Daily Bread e Right to the Future – questões que, no fundo, são os desafios colocados aos artistas e também às comunidades. E as universidades – nós Iscte, Barcelona, Montpellier, Belgrado – temos a missão de ajudar os artistas nesta reflexão. Tentamos em conjunto discutir os temas do projeto na perspetiva de influenciar as políticas. Tivemos, há relativamente pouco tempo, a conferência realizada pelo Iscte e pela Artemrede em Portugal, “Having a Voice: Peripheries and participation at the heart of cultural policies”. Há uma outra dimensão na pesquisa, que está só do nosso lado, que é monitorizar o projeto e os seus impactos, o que se faz muito nos projetos europeus. Para além dos dois toolkits referidos, temos um outro toolkit, desenvolvido aqui no Dinâmia’CET, para medir o impacto das atividades culturais, de forma que as pessoas possam avaliar os seus impactos, em 75 dimensões! Basicamente tem a ver com as questões económicas, mas também com o impacto social, ambiental, em termos de participação e cidadania, e com o impacto cultural propriamente dito. É uma grelha que permite avaliar impactos desde um grande festival a uma iniciativa pequena.



A discussão do que é central e do que é periferia tem sido muito rica. A atividade cultural legitima‑se por ser marginal em relação aos centros. A própria atividade alternativa mais criativa é a que não é central.



Como é que as universidades contribuem para algo liderado pela sociedade civil?

A ideia foi as quatro universidades serem complementares. Nós, Iscte, temos trabalhado muito a cultura na relação com o território, impactos, a ideia de periferia, sul, etc. A equipa do Dinâmia’CET inclui ainda o Ricardo Venâncio Lopes, a Margarida Perestrelo e a Elisabete Tomaz.
Depois temos a Universidade de Artes Dramáticas de Belgrado, onde estão, por exemplo, mais interessados na questão das carreiras artísticas e na articulação com as grandes questões de política cultural da UNESCO. A Universidade de Montpellier e a Universidade de Barcelona têm trabalhado juntas, nos campos da gestão cultural, das políticas e da participação cultural, seja com comunidades especificas seja com públicos generalistas.


As iniciativas dos parceiros do projeto abarcam que setores das artes e da cultura?

A maioria dos parceiros são das artes performativas, muito na fronteira entre diferentes artes. As call têm sido relativamente abertas, têm aparecido muitas pessoas nas artes performativas, dança, artes circenses, mas também artes visuais, e assim têm sido selecionadas pessoas muito diferentes, por exemplo, na fronteira entre arquitetura‑instalação‑performance. Há aqui muito trabalho interdisciplinar, mesmo em termos culturais. Até porque há a barreira da língua: por exemplo, apresentar uma peça em português, na Grécia, é difícil. Há pouco tempo tivemos um tandem com uma artista grega, que atuou em Torres Vedras. Era uma atuação de dança, mas havia algumas palavras e estavam traduzidas.

 

Quais as particularidades detetadas nos países de periferia que levaram à necessidade de fazer este projeto?

Isso foi muito discutido, inclusive na conferência “Having a Voice”, por exemplo, face ao paradoxo de fazermos uma conferência em inglês quando nenhum dos parceiros é inglês! Estamos a utilizar uma língua do centro porque normalmente a legitimação artística é feita na Inglaterra, na Alemanha, na França, nos grandes países europeus. A ideia é discutir esta condição de perificidade (periférica) que nós temos, e onde o sul é mais imaginário que geográfico.
A discussão do que é central e do que é periferia tem sido muito rica até porque muita da atividade cultural se legitima por ser marginal em relação aos centros, e a própria atividade alternativa mais criativa é aquela que não é central.
O ponto de partida foi criar uma rede que quisesse questionar o centro e pensar o que, em termos de políticas, é importante para chegar ao centro. E também tem sido discutido se estas pessoas querem ser o centro. A partir do momento em que sejam o centro, não terão os vícios de que se queixam acerca do centro?


Qual é o output que se espera venha a existir?

Vários, para além das criações artísticas propriamente ditas, temos feito workshops de capacitação técnica das pessoas, sobre a relação com os públicos, com os artistas. A ideia é haver um conjunto de lógicas e de técnicas que são partilhadas, e de rotinas em que as pessoas aprendem umas com as outras. Há pessoas a serem capacitadas nos vários workshops. Há três redes neste projeto: a Artemrede, em Portugal, a Transversal na Catalunha e, em França, a Occitane. Têm muitas vezes os mesmos problemas pelo que há partilha efetiva de know how entre eles.
Para nós também tem um lado de advocacy importante: colocar estes espaços, com problemas diferentes, com a barreira da língua, com a legitimação das suas escolas, com problemas em relação à própria escala dos mercados, assumirem essas características. A ligação à prática e às políticas culturais e de desenvolvimento territorial é sempre muito importante.


No final do projeto, após a conferência na Sérvia, em 2024, o que vai perdurar?

As criações realizadas têm, na prática, dois espetáculos, mas a ideia é que depois estejam disponíveis para venda e para circular com outros públicos. No final haverá também um relatório, mas temos a ideia de fazer uma publicação muito virada para o público em geral, para as instituições culturais e as pessoas do setor, mas também para os decisores políticos, com uma secção para as políticas públicas de cultura. Não está no projeto, mas a ideia (em Portugal) também é poder fazer‑se, no final, uma espécie de festival com os espetáculos que foram exibidos, agrupa‑los num sítio, para dar maior visibilidade ao que foi feito.


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