EDITORIAL

Aprofundar a articulação entre ensino e investigação


Reitora


MARIA DE LURDES RODRIGUES

Reitora



A última grande reforma do ensino superior em Portugal iniciou-se em 2006 com a integração de Portugal no processo de Bolonha e a consequente alteração da estrutura dos ciclos de ensino e dos processos de atribuição de graus e diplomas. Prosseguiu com a aprovação de um novo regime de autonomia, com a revisão dos estatutos da carreira docente e de investigação, com a definição de um novo regime de avaliação e acreditação e com a aprovação de uma nova lei de financiamento. O Processo de Bolonha, que induziu uma série de mudanças nos sistemas de ensino superior em todos os países da Europa, serviu como enquadramento desta gama diversificada de intervenções reformistas.

Os dois princípios orientadores mais importantes da reforma foram, sem dúvida, a facilitação da mobilidade internacional de estudantes e professores, garantida pelo sistema de créditos de formação, e a valorização da recorrência, isto é, a institucionalização da aprendizagem ao longo da vida, do regresso dos diplomados à universidade em qualquer momento do seu percurso profissional.

A concretização do Processo de Bolonha em Portugal tem inscrita uma exigência de maior articulação entre ensino e investigação. Tal exigência foi desde logo evidente no articulado do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU), com a exigência do doutoramento para entrada na carreira. Foi também bem marcada no novo Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), nomeadamente com a exigência de existência de estruturas de investigação como condição de lecionação de ciclos de formação avançada, bem como com a fixação da possibilidade de participação de investigadores nos órgãos de gestão das universidades. Por fim aquela articulação está ainda presente no Decreto-Lei de Graus e Diplomas, com a definição do doutoramento como prova de aquisição de competências de investigação.

O ponto de arranque do desenvolvimento do sistema científico, em 1995, com a criação do Ministério da Ciência, determinara, por razões várias, um caminho para a ciência paralelo e dissociado do caminho do ensino universitário. Foi a estratégia que melhor serviu o desenvolvimento da investigação, a criação de massa crítica no plano dos recursos do trabalho científico, a garantia da autonomia e da liberdade em ciência, a promoção equilibrada de todas as áreas científicas, a internacionalização e o aumento da produção científica com critérios internacionais.

A partir de 2015, instituiu-se a tutela conjunta da ciência e do ensino superior. Passados mais de 15 anos de existência dessa tutela conjunta, bem como do início da reforma que tinha inscrito o objetivo de promover uma maior articulação entre ensino e investigação, é o momento de identificar os desafios que ainda enfrentamos.

A articulação entre o ensino superior e as atividades de investigação é essencial para a difusão e progresso do conhecimento. Hoje, mais de 40% da investigação que se faz no país é realizada em unidades de investigação das universidades, ou a na sua periferia, com docentes do ensino superior. Mas os caminhos continuam a ser em grande parte paralelos, sendo necessário encontrar modos de cruzamento e de travessia que promovam uma articulação mais efetiva do que a hoje existente.

Apresento aqui um conjunto de interrogações, mais do que certezas, sobre três tópicos suscitados pela reflexão sobre os caminhos daquela articulação mais efetiva.

1. As carreiras. Temos hoje um estatuto da carreira docente universitária (ECDU) e um Estatuto da Carreira de Investigação (ECI). No caso dos docentes, estão instituídas exigências de desenvolvimento de atividades de docência, de investigação, de difusão e de gestão. Para efeitos de progressão na carreira, a investigação tem, porém, um peso desproporcionado em relação ao ensino, saindo desvalorizadas a iniciativa e a inovação pedagógica, ou a criação de novos cursos por docentes que centram no ensino a sua atividade. Muitos defendem a existência de apenas uma carreira consagrando no estatuto diferentes perfis profissionais, uns mais centrados no ensino, outros na investigação. Tenho defendido a necessidade da existência das duas carreiras, ainda que com a possibilidade articulação e de circulação entre elas. As atividades de ensino e de investigação têm características diferentes. O desenvolvimento científico necessita de investigadores a tempo inteiro. O desenvolvimento do ensino necessita de professores a tempo inteiro. Os desafios do ensino à distância, a criação e modernização de cursos, as exigências da inovação pedagógica centrada em projetos são exemplos dos desafios que os docentes e as universidades enfrentam. É verdade que, num mesmo estatuto, se podem prever diferentes perfis, de ensino, de investigação ou mistos. É verdade, também, que pode ser recomendável, para a integração entre ensino e investigação, que os investigadores tenham alguma participação no ensino (orientações, seminários...), embora de forma contida, para não prejudicar a vertente principal da sua atividade, a investigação. E que os professores mantenham atividade de investigação, como é próprio da universidade, mas sem que isso se faça à custa da vertente do ensino. Porém, continuo a pensar que os investigadores das unidades de investigação, sobretudo as que estão fora do perímetro das universidades, necessitam de um estatuto que reconheça a especificidades da sua atividade. Continuo a pensar que a uniformização é sempre um caminho mais estreito do que o da diversidade.

2. As métricas. Estamos, também neste caso, perante o dilema da uniformização versus diversificação. Assistimos nos últimos anos à difusão de modelos de avaliação baseados em métricas, em contagens do número de artigos e de citações diferentemente valorizados em função da seriação das revistas científicas. A metodologia, importada de algumas áreas científicas, tem vindo a impor-se em todos os domínios, apesar da muita reflexão existente sobre a sua inadequação e sobre os seus efeitos perversos e negativos em geral, e nas ciências sociais, nas artes e nas humanidades, em particular. Reflexão que noutros países se traduziu já em inflexões nos modelos de avaliação que favorecem metodologias mais multidimensionais. Grave ainda, pela negativa, é a generalização das métricas como base de avaliação das atividades de ensino. As métricas e as avaliações de base quantitativa, usadas em exclusivo, prejudicam gravemente tanto a investigação como o ensino. Passa a ser mais importante publicar do que investir no desenvolvimento de projetos de investigação. Passa a ser mais importante dar um número elevado de aulas do que criar novos cursos e investir na modernização pedagógica. Sendo a avaliação e a identificação do mérito relativo e absoluto um instrumento fundamental no financiamento tanto da investigação como do ensino, importa refletir e encontrar caminhos que contrariem a homogeneização de procedimentos e o predomínio de critérios unidimensionais que serão sempre empobrecedores.

3. Integração das unidades de investigação nas estruturas das universidades. Em algumas universidades, foi promovida a integração orgânica dos centros de investigação, mantendo-se a sua autonomia científica e financeira, como é o caso do Iscte. Em outras universidades, as unidades de investigação mantêm a sua autonomia estatutária, estabelecendo-se a ligação à universidade através dos docentes que nelas desenvolvem as atividades de investigação. Há vantagens e riscos nas duas soluções. A integração orgânica deve preservar a autonomia científica e financeira das unidades de investigação, proporcionando simultaneamente a possibilidade de os investigadores participarem nos órgãos científicos consultivos ou de decisão. As unidades de investigação situadas fora das estruturas orgânicas das universidades têm uma absoluta dependência de financiamentos externos e maior exposição às conjunturas de crise. Nos dois casos, isto é, seja qual for o modelo de articulação das unidades de investigação com a universidade, a questão crítica é a do financiamento sustentável da investigação. Importante, para mitigar estes problemas, é instituir, e seguir rigorosamente, modelos de avaliação exigentes, estáveis e competitivos, baseados em critérios internacionais, de que resulte previsibilidade no financiamento num raio temporal de pelo menos seis anos. Por outro lado, ao nível institucional, a definição das políticas de ciência beneficiaria com o envolvimento dos reitores. Por exemplo, não tem sentido desenhar um programa de estímulo ao emprego científico, como o que foi aprovado em 2017, sem envolver universidades nas soluções, uma vez que delas depende o êxito do programa. Ou, ainda, não contar com a participação do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) no Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI,) onde tantas outras instituições estão representadas.

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