SOCIEDADE

Do discurso de ódio às suas contra narrativas


Rita Guerra 01


RITA GUERRA

Docente Iscte

Investigadora CIS-Iscte


O discurso do ódio é exponenciado pelas redes sociais. E só as contra narrativas podem empoderar as comunidades que dele são vítimas



Em que circunstâncias surgiu o projeto kNOwHATE?

Surgiu durante o confinamento, num brainstorming, que resultou de uma call aberta pela FCT sobre as potenciais consequências da pandemia em crimes de incitamento ao ódio e à expressão do discurso de ódio. Relatórios internacionais mostravam já essa tendência de aumento do discurso de ódio dirigido a determinadas comunidades durante a pandemia. Como trabalho na área do preconceito e discriminação pensei concorrer e utilizar uma abordagem interdisciplinar, que cruzasse ciências sociais e tecnologias. Entrei em contacto com o GAI – Gabinete de Apoio à Investigação para saber se havia investigadores que trabalhassem nestas áreas no Iscte. Rapidamente me indicaram vários colegas, entrámos em contacto via zoom, e em cerca de duas ou três semanas escrevemos e submetemos uma proposta. Mas não conseguimos o financiamento.

  

Mas não desistiu?

Não! Acabou por surgir uma nova oportunidade, com a abertura de uma call da Comissão Europeia. Decidimos reciclar o projeto, envolvendo um consórcio mais alargado de parceiros académicos e das comunidades alvo envolvidas: várias unidades de investigação do Iscte, parceiros do INESC-ID e do LARSyS – do Instituto Superior Técnico –, e vários parceiros da comunidade, Casa do Brasil, ILGA, SOS Racismo, e a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. Esta candidatura foi já mais elaborada e complexa, e acabou por ser financiada.


Este projeto procura produzir conhecimento sobre as expressões de discurso de ódio em Portugal, sobre as contra narrativas que existem e usar esse conhecimento para informar, sensibilizar e empoderar as pessoas vítimas e os decisores políticos


 

 O que se pretende alcançar, quanto aos objetivos do projeto?

Há um interesse muito grande, por parte da Comissão Europeia, em compreender o discurso de ódio e qual a melhor forma de o combater e regular. Há uma discussão académica e no espaço público sobre as formas mais eficazes de regular estes fenómenos: Será que devemos bloquear/denunciar conteúdos, ou isso viola o direito à liberdade de expressão?

No projeto queremos, por um lado, compreender as diferentes manifestações de discurso de ódio online, as mais explícitas e abertas e as mais implícitas e subtis. O discurso de ódio é algo muito complexo de definir. Estou particularmente interessada nas nuances que esse discurso adota em relação às diferentes comunidades alvo. As manifestações/expressões não são iguais no discurso contra a comunidade imigrante brasileira, contra a comunidade roma/cigana, ou contra a comunidade afrodescendente. A premissa de base é que se conseguirmos identificar estas nuances podemos desenhar estratégias de combate ao discurso de ódio mais eficazes e específicas. 

Um outro objetivo do projeto é compreender o counterspeech, ou seja, as contra narrativas que surgem ao discurso de ódio com o objetivo de o eliminar. Alguns relatórios da ONU sugerem que a produção de contra narrativas é uma estratégia eficaz de combate ao discurso de ódio, que permite empoderar as comunidades que são vítimas do discurso de ódio, e ainda as pessoas que não sendo alvos assistem ao discurso, os bystanders, que podem também ser atores importantes de contradiscursos. No fundo, o projeto procura produzir conhecimento sobre as expressões de discurso de ódio em Portugal, sobre as contra narrativas que existem e usar esse conhecimento para informar, sensibilizar e empoderar as pessoas e decisores políticos.


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Quais os métodos de investigação que foram utilizados?

Numa primeira fase, foi preciso realizar entrevistas e grupos focais com pessoas das comunidades alvo, para sabermos como elas experienciavam o discurso de ódio e se identificavam alguma forma de contra narrativa. Fazer este trabalho durante a pandemia foi muito desafiante e os parceiros foram fantásticos na condução destas atividades. Enviámos para a Comissão Europeia uma análise qualitativa preliminar deste trabalho, que confirmou que as diferentes comunidades, no nosso caso, comunidades imigrantes, comunidades lgbti+ e comunidades étnico-racializadas, salientaram diferentes aspetos e diferentes formas de expressão nos discursos de ódio. Esta abordagem bottom up, trazida pelas próprias comunidades foi depois cruzada com a revisão de literatura e o quadro conceptual que definimos, muito ancorado em abordagens da Psicologia Social e da Linguística. Na fase atual, os/as colegas de Ciência de Dados estão a extrair um conjunto de dados de redes sociais para serem posteriormente analisados. Focámo-nos, nesta fase, no Twitter – porque é de fácil acesso e permite interação entre pessoas – e em vídeos do Youtube, um material mais rico do ponto de vista linguístico porque não tem a limitação de carateres inerente ao Twitter.

  

A descodificação das mensagens captadas online, como se processa?

Estamos a criar guidelines de anotação. Este trabalho está a ser feito por mim, enquanto psicóloga social, e pela Paula Carvalho, linguista no INESC-ID. Vamos desenvolver um manual que reunirá as guidelines que vão depois orientar os/as bolseiros/as de investigação a codificar as primeiras mensagens extraídas pela equipa de ciência de dados. São estas guidelines que definem o que é ou não discurso de ódio, que caracterizam as suas múltiplas expressões, e que são depois utilizadas para o desenvolvimento de mecanismos de deteção automática. Pela experiência que há de projetos anteriores, sabemos que a complexidade deste fenómeno é tal que torna muito difícil detetar automaticamente discurso de ódio por simples palavras-chave – é preciso uma análise mais complexa de expressões, frases. Muitas vezes as pessoas não utilizam palavras muito extremadas porque sabem que estas são detetadas automaticamente. Por isso, a abordagem linguística trazida pela Paula Carvalho é fundamental para identificar mecanismos linguísticos, retóricos e discursivos subjacentes a mensagens em que o discurso de ódio surge de forma indireta, escondida, recorrendo por exemplo ao uso de humor, ironia, etc.  Estas expressões mais veladas e subtis são igualmente danosas para as vítimas e de difícil deteção.


 Diferentes comunidades salientam diferentes formas de expressão nos discursos de ódio


 

O que esperam obter no fim do projeto?

No essencial queremos ter um maior conhecimento deste fenómeno, das suas múltiplas expressões, e formas de o combater. Queremos ter ferramentas de deteção automática que capturem as diferentes expressões mais “abertas” e mais “subtis/escondidas” de discurso de ódio em Portugal, mas sabemos que a complexidade destas expressões traz desafios acrescidos para a sua deteção automática. Queremos produzir conhecimento que possa empoderar e capacitar as comunidades que são alvo destes discursos, mas também sensibilizar e capacitar os bystanders deste fenómeno.

Sabemos que quanto mais as pessoas são expostas a discursos de ódio mais o dessensibilizam, o normalizam, o que pode no limite condicionar a nossa capacidade de reagir e combater estes discursos. No final do projeto, esperamos ter este conhecimento refletido em materiais que alimentem campanhas de sensibilização e que informem decisores políticos.

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