DESPORTO

Faltam mecanismos para denunciar manipulação de resultados no desporto


Marcelo Moriconi


MARCELO MORICONI

Investigador CEI-Iscte e CIES-Iscte



O crescimento das apostas desportivas à escala global criou incentivos para a infiltração da criminalidade organizada no desporto. Equipas multidisciplinares estudam formas mais eficazes de enfrentar o problema.



Uma equipa por si coordenada concluiu há pouco tempo o estudo T-Preg, Training to Protected Reporting from Professional and Grassroots Sports, centrado na procura de soluções para sistemas de denúncia de corrupção no desporto. Este é um tema que só recentemente ganhou atualidade.

O tema da manipulação dos resultados no desporto entrou na agenda política, nomeadamente ao nível da Comissão Europeia, por volta de 2012. Dois anos depois, em 2014, foi publicada a Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas. Nessa altura, começou a ficar claro que o crescimento das apostas desportivas estava a criar um ambiente propício para a atividade criminosa. Nessa altura, estava a colaborar com a Transparência Internacional, e surgiu a possibilidade de desenvolver um projeto sobre este assunto, designado Staying on Side: How To Stop Match Fixing. Nesse projeto, um dos primeiros sobre esta matéria financiados pela União Europeia, através da DG Education and Culture, participaram investigadores de seis países, entre os quais o CIES-Iscte, sob a coordenação da Transparência Internacional, da Bundesliga alemã e da European Professional Football League. Esse projeto foi pioneiro, quer em Portugal, quer mesmo na Europa, ao nível académico e de intervenção prática, e foi a partir dele que se foi criando uma autêntica rede de investigação, à escala europeia, em que o Iscte assume frequentemente o papel de coordenador.


O T-Preg surge, então, na sequência lógica dessa investigação pioneira. Mas é mais que um projeto de investigação.

Os projetos financiados pelo Erasmus + não são apenas de investigação científica, mas também de educação e intervenção social, ou seja, destinam-se também a encontrar soluções, promover formação para os stakeholders, e recomendar políticas públicas informadas em evidências empíricas. São iniciativas desenvolvidas por consórcios multi-setoriais. Por isso, temos trabalhado com entidades muito diversas, especialmente comités olímpicos, departamentos oficiais, como o Instituto Português do Desporto e Juventude, autoridades reguladoras, monitorizadores de apostas, etc.  E, portanto, há uma componente de investigação, especialmente de data collection, de forma a termos evidências – e isso é muito importante, porque se trata de uma matéria sobre a qual faltam dados empíricos –, ou seja, a termos a noção dos mecanismos de denúncia que já existem e fazer a sua avaliação. Mas o objetivo central é a criação de uma ferramenta educativa e de guias de recomendações políticas sobre como criar mais e melhores sistemas de denúncia protegida e normas sobre protecção de denunciantes.



O objetivo é avaliar os mecanismos de denúncia existentes, criar uma ferramenta educativa e recomendações de políticas públicas para melhorar essas práticas



BITEFIX


BUILDING INNOVATIVE TOOLS FOR THE EXCHANGE OF INFORMATION AND AWARENESS RAISING AGAINST MATCH-FIXING ON SPORT 2021-2023

Embora o match fixing e a fraude nas apostas sejam crimes internacionais em rápida evolução, profundamente infiltrados no universo desportivo, ainda enfrentam uma falta anacrónica de resposta coerente, sistemática e articulada do desporto, dos governos ou da sociedade em geral. Tal como já foi identificado por vários autores, a manipulação generalizada de resultados desportivos ocorre em grande medida devido à falta de informação e sensibilização dos atletas e/ou de programas adequados e eficientes de capacitação das organizações desportivas e/ou à falta de intercâmbio adequado de informação entre os atores-chave para lhes permitir combater a infiltração criminosa. O projeto BITEFIX visa desenvolver e fornecer ferramentas inovadoras e práticas que permitam aos intervenientes empenhados (autoridades, reguladores e operadores de apostas, agências governamentais e organismos de gestão desportiva, principalmente) trabalhar em conjunto contra a manipulação de jogos e a fraude nas apostas desportivas, através do intercâmbio de informação oportuna, segura e fiável e da sensibilização para a importância de salvaguardar a integridade do desporto.



Esse trabalho pretende dar resposta à preocupação crescente sobre esta matéria?

Além das entidades, da área do desporto, diretamente afetadas, o tema começa a entrar na agenda de diversas organizações internacionais. É o caso da Convenção do Conselho de Europa, que entrou em vigor em setembro de 2019, que, entre as suas várias recomendações, contempla a criação de plataformas de denúncia de casos de manipulação desportiva, que, aliás, está prevista nos regulamentos desportivos. Por outro lado, a publicação da Diretiva da Comissão Europeia, também de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União, tem basicamente aplicação empresarial, sendo que o desporto ganharia com uma menção mais explícita. As ciências sociais têm demostrado que a denúncia de implicados diretos é chave para a prevenção, investigação e condenação das práticas de corrupção em qualquer área social.


Que métodos de investigação utilizam neste tipo de projetos?

Não se trata de um projeto de investigação pura. Tratando-se de um consórcio com entidades tão distintas, cada uma delas tem um objetivo específico. Do nosso ponto de vista, tentamos retirar destes projetos o máximo de informação e dados passíveis de serem estudados na área das ciências sociais. Tendo nós no consórcio os comités olímpicos, utilizámos esse canal para a realização de inquéritos. Realizamos também entrevistas, sendo que neste caso se trata de um processo longo, visto que necessitamos de criar confiança e de abordar temas que são muito delicados. Mas o resultado é bastante compensador, tendo o projeto dado origem a um nível muito de elevado de publicações em revistas científicas. O programa T-Preg foi um dos projetos financiado pelo Erasmus + Sport do qual resultaram mais publicações científicas.



desporto



E têm acesso a dados do sistema de justiça, ou das polícias?

Sim, sim. Há processos que podem ser consultados e há agentes com os quais realizamos entrevistas.


De qualquer forma, esta é uma atividade criminosa, bastante complexa, certamente difícil de investigar.

A narrativa oficial diz que o match fixing está a transformar-se numa ameaça para a sustentabilidade do desporto. Embora seja uma prática histórica, dado que na Grécia antiga já havia resultados combinados, a globalização do mercado das apostas desportivas online tem criado novas oportunidades para a infiltração da criminalidade organizada no desporto, com o objectivo de manipular jogos e tirar partido do mercado de apostas. Ou seja, trata-se de uma prática antiga, mas com dinâmicas novas e muito mais complexas.

Apesar disso, a quantidade de denúncias continua muito baixa, obviamente devido aos perigos que envolve. Há o exemplo do futebolista Simone Farina, que denunciou um grande caso de corrupção no futebol italiano, em 2011, e que ficou sem lugar no futebol em Itália e hoje vive em Inglaterra. Mais recentemente, o caso de tenistas, que denunciaram, e que ficaram com a sua carreira arruinada. É por isso mesmo que se torna fundamental encontrar soluções para proteger os denunciantes, antes de criarmos mecanismos de denúncia.



A Diretiva da Comissão Europeia relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União tem basicamente aplicação empresarial. O desporto ganharia com uma menção mais explícita



Mas o tema tem merecido a atenção da justiça e das polícias?

Sim, apesar das dificuldades no que respeita à investigação sobre o mercado de apostas. Trata-se de um mercado que não está regulado à escala global, sendo que a atividade se desenvolve frequentemente a essa mesma escala. Um apostador da China pode apostar num jogo que se realiza na Europa, entre uma equipa latino-americana e outra africana… Além disso, é um tema que envolve muitos atores, desde as entidades desportivas, os reguladores, a investigação policial, os governos, etc, pelo que se coloca um enorme problema de intercâmbio de informação. Por exemplo, poderemos imaginar que a Interpol partilhará informação com a FIFA, após os escândalos de corrupção em que esta esteve envolvida? Como gerar confiança entre instituições? – esse é precisamente o tema de um novo projeto de investigação, iniciado em 2021, no qual o Iscte também participa: Bitefix – Building innovative tools for the exchange of information and awareness raising against match-fixing on sport.


Que materiais concretos resultaram do T-Preg?

O objetivo fundamental do projeto é a formação e treino de decisores de topo no desporto profissional e no desporto de base nos temas do match fixing. Foi construída uma unidade de e-learning, com vários módulos, que incluem a explicação do problema (este é um tema sobre o qual a pessoas têm muito pouca informação), o modo de criar uma plataforma de denúncia, a sua gestão, o enquadramento legal… Também foram publicados guias de recomendações para políticas públicas. No entanto, não pretendemos criar um modelo cristalizado e final, mas antes continuar a trabalhar com as diversas entidades, seja na concretização deste projeto, seja no eventual desenvolvimento de projetos de continuação.


Sente que a investigação que realiza tem consequências ao nível dos decisores políticos?

Claramente. Essas entidades já estão, de alguma forma, envolvidas no projeto, seja ao nível dos governos, da Comissão Europeia ou dos consultores das Nações Unidas. De alguma forma, há um trabalho conjunto de procura de soluções.




SBS4MED

SKILLS BY SPORT 4 MED: SPORT AS A VEHICLE FOR DEVELOPING SKILLS FOR THE LABOR MARKET AND PROMOTING EMPLOYABILITY AND ENTREPRENEURSHIP
2020-2023

O projeto visa promover de forma estratégica a transformação social através do desporto, na região mediterrânica, centrando-se no desporto como veículo de promoção das capacidades de trabalho e do emprego/empreendedorismo. Este objetivo vai ao encontro das principais prioridades das políticas da UE, não só no quadro do desporto, mas também na integração, imigração, desenvolvimento, segurança e cooperação internacional. A principal necessidade abordada por este projeto é a elevada taxa de desemprego na Bacia Mediterrânica (costas norte e sul), a qual só pode ser eficazmente abordada através de uma estratégia orientada a longo prazo, destinada a reforçar a capacidade da força de trabalho, incluindo o empreendedorismo. Uma segunda necessidade fundamental é a necessidade crescente de “capacitar o desporto” como instrumento de mudança de impacto social, ou seja, capacitar o desporto como um meio e deixar de o considerar apenas como um âmbito em si mesmo. Uma terceira necessidade fundamental é promover um ambiente de cooperação e de confiança entre a Costa Sul e a Costa Norte na Bacia Mediterrânica.

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