EDITORIAL

Construir o futuro no presente


reitora editorial


MARIA DE LURDES RODRIGUES

Reitora



Este número da revista EntreCampus assinala o regresso às atividades presenciais depois de dois anos letivos condicionados pela pandemia.

O Iscte não parou. Docentes, estudantes e funcionários continuaram o seu trabalho, passando as atividades letivas para ensino a distância, assegurando o funcionamento da universidade e cumprindo todos os objetivos. Os investigadores prosseguiram com as atividades de investigação, tendo, em alguns casos, incluído na sua agenda a análise dos impactos da pandemia na economia e na sociedade em diferentes dimensões. Neste número encontramos exemplos de como, no domínio da investigação, o nosso trabalho continuou e se alargou a novos temas.

No Iscte, aproveitámos a pausa forçada para repensar a nossa estratégia de desenvolvimento, refletindo sobre as fragilidades e as forças reveladas pela crise vivida a uma escala global. Estamos hoje, como instituição, mais fortes, mas também mais conscientes da fragilidade do mundo em que vivemos. Seguros da importância do ensino e da investigação para enfrentar os desafios do futuro e atentos aos sinais do mundo, das mudanças económicas e sociais, tecnológicas e climáticas.

O futuro é construído quotidianamente, não existe como entidade autónoma do presente. Ele será o resultado das ações e decisões tomadas hoje, a partir do que queremos e do que já conhecemos. Para a ciência e o ensino superior, para o campo em que o Iscte se situa, continuarão a ser objetivos centrais, produzir e difundir conhecimento com qualidade continuando a contribuir para melhorar as condições de vida de todos os cidadãos e para diminuir as desigualdades sociais e económicas; continuando a contribuir para a sustentabilidade ambiental, a preservação do funcionamento democrático das instituições e do estado de Direito.

Paradoxalmente, num momento histórico em que se reconhece a importância da ciência e do conhecimento para enfrentar os desafios complexos das sociedades contemporâneas e em que existe uma consciência mais viva dos riscos que enfrentamos, vivemos simultaneamente um momento de incerteza no que que respeita às condições do financiamento das atividades de investigação e da ciência.

Desde há mais de uma década que as crises sucessivas, tornando mais agudas as dificuldades de crescimento económico, têm gerado dúvidas sobre o caminho a seguir no que respeita ao financiamento da ciência. Pode o país continuar a investir em investigação que não implique melhorar a economia? Os investimentos em investigação devem ser colocados nas empresas ou nas instituições científicas? Precisamos de investir em todas as áreas do saber ou devemos fazer escolhas? Os investimentos em investigação devem depender exclusivamente da qualidade ou também da sua utilidade? E as dúvidas trouxeram consigo uma mudança de paradigma na política de ciência. A inexistência, no Portugal 2020, no Programa de Recuperação e Resiliência, como no Portugal 2030, de qualquer programa de financiamento para a Ciência é revelador desta mudança. Na programação destes fundos europeus, repartiram-se as responsabilidades de financiamento e de avaliação dos projetos e atividades de investigação pelos programas da economia e do território, canalizando os recursos financeiros para as atividades de I&D empresarial e para o apoio a investigação subordinada a objetivos estratégicos de desenvolvimento dos territórios. Nesta decisão há a ideia subjacente, não explicita, de que o país não pode continuar a investir em investigação que não implique melhorar a economia ou o desenvolvimento dos territórios.

A colocação do problema nestes termos, definindo por escolha política, central ou regional, os sectores industriais ou as áreas da economia a que a ciência de deve dedicar, ignorando a importância de assegurar o financiamento geral e de base do sistema científico, significa ceder à tentação de planificar a ciência e a economia. Como a história nos mostra, tal orientação colocará em risco o futuro da ciência e da própria economia. A prazo não teremos nem ciência nem uma economia modernizada.

A produção de conhecimento científico exige um compromisso com a sociedade e o objetivo de melhorar a vida das pessoas exige uma atenção aos problemas e desafios emergentes em cada conjuntura. Mas exige também liberdade e autonomia para a definição de temas que respeitam às agendas científicas. Por isso, importa articular as políticas de desenvolvimento com a política científica. Há muitas formas de o fazer: lançando desafios à comunidade científica; identificando oportunidades e colocando problemas na agenda científica; promovendo o emprego de doutorados nas empresas e entidades públicas; criando espaços, infraestruturas e programas de articulação entre as unidades de investigação, as universidades, as empresas e entidades do sector público. Contudo, as medidas de articulação das políticas de desenvolvimento com a política de ciência não devem substituir um financiamento de base da investigação que garanta a produção de conhecimento como finalidade em si própria, obedecendo exclusivamente aos princípios da avaliação da qualidade e da competição.

O triunfo da ciência (não aplicada) na descoberta da vacina e, posteriormente, a sua aplicação na resolução dos problemas da crise pandémica, ilustrando a importância do financiamento dos sistemas científicos, poderia ter mitigado esta tendência. Mas não.

A política de ciência propriamente dita, no nosso país, está hoje concentrada na promoção do emprego científico e da formação avançada, o que permitirá continuar a dimensionar o sistema e a ganhar escala. Porém, o financiamento de projetos de investigação e das infraestruturas científicas e tecnológicas, baseado na avaliação da qualidade e da competição, foi drasticamente reduzido, colocando em risco a consolidação do próprio sistema científico. Acresce que, na definição do Programa de Recuperação e Resiliência e do Portugal 2030, a tendência de subordinação política da Ciência à Economia e ao Território, ou melhor, a ausência de espaço e de financiamento para o desenvolvimento científico, tem vindo a ser reforçada.

Perante estas tendências tornou-se urgente o posicionamento do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa no novo paradigma da política científica nacional e europeia, em três planos.

1. Novas formas de organização institucional da atividade de investigação. A partir das 8 unidades de investigação existentes, foram lançadas, e apoiadas pelo Gabinete de Apoio à Investigação, iniciativas de docentes e investigadores, de criação de novas instituições que se constituirão como veículos de financiamento nos próximos programas de ciência e inovação, designadamente no Programa de Recuperação e Resiliência, no Portugal 2030 e no Quadro Europeu de Investigação. O Iscte criou o Laboratório Associado – SocioDigitaLAB, criou o Centro de Valorização e Transferência de Tecnologias, Iscte-Conhecimento e Inovação, foi co-fundador do Laboratório Colaborativo – CoLabor e do Polo de Inovação Digital – AI4PA (Artificial Intelligence & Data Science for Public Administration Portugal Innovation Hub).

2. Novos espaços de trabalho colaborativo pluridisciplinar, comprometido com o contexto em que nos inserimos. Está hoje mais difundida e aceite a ideia de que nenhum dos grandes desafios ou problemas do mundo se resolve sem a convocação e o envolvimento de diferentes áreas do saber. O trabalho colaborativo e pluridisciplinar centrado na resolução de problemas é decisivo para enfrentar os complexos problemas das sociedades contemporâneas. No Iscte, foram já criados dois projetos especiais – Saúde Societal e Inteligência Artificial para a Administração Pública – como plataformas colaborativas pluridisciplinares, que envolvem docentes e investigadores de todas as escolas do Iscte. Tais iniciativas procuram promover e aprofundar a articulação Tecnologia e Sociedade, articulação que se estenderá e reforçará com a criação da escola Iscte-Sintra de tecnologias digitais aplicadas a diferentes sectores e contextos organizacionais.

3. Novas formas de internacionalização. A ciência e a investigação são por natureza globais e internacionais, mesmo quando focadas na resolução de problemas locais. O espaço dos países da União Europeia e o dos países de língua oficial portuguesa oferecem ao Iscte oportunidades de abertura à internacionalização. Têm sido dados passos significativos de cooperação com universidades de língua portuguesa, no campo da Ação Humanitária, e de cooperação com outras universidades para a criação de um consórcio da Universidade Europeia – PIONEER. Necessitamos de reforçar e alargar a colaboração com as universidades chinesas no âmbito dos programas de doutoramento em Gestão, bem como a nossa capacidade na liderança de projetos de investigação no Quadro Europeu de Investigação.

Uma palavra final para a liberdade na ciência. Como referi atrás, a produção de conhecimento científico exige liberdade e autonomia na definição da agenda de investigação. Volto ao exemplo do desenvolvimento rápido das vacinas para a prevenção do virús da Covid, que oferece a todos os investigadores uma oportunidade de reflexão sobre esta questão. De forma muito sintética, podemos dizer que o êxito das vacinas se explica, não por milagre, mas por opções ou princípios orientadores da política científica. Importa destacar, de entre os vários princípios, o da liberdade de investigar que permitiu o empenho continuado e persistente de equipas de investigadores na produção de conhecimento “inútil”, investigadores que acreditavam ser importante saber mais e insistiram em encontrar resposta para questões da sua agenda de investigação, em aprofundar o conhecimento, apesar de esse conhecimento ser desvalorizado pelas agências financiadoras e o seu objeto estar fora de prioridades políticas centralmente definidas.

Preservar a liberdade na ciência é também construir o futuro.

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